Por Rhoana Lersch Oliveira e Pedro Ansel

 

Perfilamento racial no Judiciário brasileiro e o caso de Francisco

“Se essa cena ocorresse nos Jardins [bairro nobre da cidade de São Paulo], os policiais, certamente, não teriam se aproximado e abordado o paciente”. Esse trecho integrou o voto do Relator Ministro Sebastião Reis Júnior, único favorável ao réu no julgamento do HC (habeas corpus) de n. 660.930/SP, julgado em 2021 pela Sexta Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça). O HC em questão, negado pelos demais magistrados da Sexta tribunal, pedia a anulação das provas obtidas a partir de uma abordagem policial ilegal que levou a prisão de Francisco Cícero dos Santos Júnior, acusado por tráfico de drogas. A fala do Ministro aponta um problema sistemático no Brasil: abordagens policiais amparadas em critérios discriminatórios.

Na ocasião da abordagem, Francisco foi flagrado pelos policiais em posse de 1,5 gramas de cocaína — peso aproximado de um clipe de papel —
o que lhe rendeu uma condenação por tráfico de drogas e uma pena de mais de sete anos de prisão em regime fechado. A negação do HC pelo STJ, no caso em questão, legitima tanto as prisões por critérios raciais na jurisprudência penal quanto os procedimentos de abordagem policial realizados ilegalmente. O critério racista para abordagem de Francisco fica mais evidente quando analisamos o depoimento dos policiais que realizaram a prisão dele, motivada porque “ao passarem pela Rua Santa Teresa, avistaram ao longe um indivíduo de cor negra que estava em cena típica de tráfico de drogas”. Nos autos consta apenas que Francisco foi abordado no bairro da Pedra Branca e que, no momento em que os policiais se aproximaram, ele estava em pé próximo a um carro estacionado junto ao meio fio.

 

Embora Francisco tenha negado as acusações e afirmado ser usuário de drogas nas duas oportunidades em que foi ouvido, sua fala foi desconsiderada pela justiça. A ínfima quantidade de droga apreendida, a qual poderia confirmar a versão do réu, foi utilizada pelo STJ para negar seu HC e referendando sua prisão. Por outro lado, os depoimentos dos policiais, com vieses claramente racistas, conforme o trecho acima, foram considerados legítimos pelo judiciário para sustentar a condenação.

O caso Francisco aponta para um problema sistêmico. Em todo o país, o critério de suspeição extraoficial que direciona o procedimento da abordagem policial é a intersecção entre raça, classe social e pertencimento territorial, a mesma lógica que vem impulsionando o aumento da mortalidade de jovens negros periféricos pelas mãos de agentes de segurança. O resultado desta dinâmica discriminatória vem sendo discutido em pesquisas como a do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, que após analisar dados de boletins de ocorrência concluiu que em situações similares de abordagens policiais em São Paulo,“31 mil negros foram enquadrados como traficantes e brancos tratados como usuários”.

A ausência de critérios objetivos para sustentar a fundada suspeita, dá margem para a fundamentação jurídica de prisões originadas por abordagens baseadas em estereótipos atrelados à cor da pele da pessoa, o local em que ela estava e a sua “reação” ao avistar a guarnição

Este quadro vem se consolidando a despeito do que está disciplinado no artigo 244 do Código de Processo Penal. A lei prevê que a abordagem pode sujeitar qualquer pessoa, independente de gênero, local de moradia ou da identidade racial, desde que respeitado o principal requisito para a busca pessoal: a fundada suspeita. A chamada fundada suspeita pode ser definida como “atos ou ações objetivamente verificáveis, anteriores à realização da busca, que permitam inferir com segurança a prática de conduta ilícita pela pessoa abordada”. Todavia, a ampla margem de discricionariedade dos agentes policiais frente ao poder Judiciário acaba por conferir legalidade à utilização de um leque extenso de argumentos subjetivos para amparar as abordagens policiais racialmente discriminatórias.

A ausência de critérios objetivos para sustentar a fundada suspeita, dá margem para a fundamentação jurídica de prisões originadas por abordagens baseadas em estereótipos atrelados à cor da pele da pessoa, o local em que ela estava e a sua “reação” ao avistar a guarnição. Como efeito desta dinâmica racista, todos os anos casos como o de Francisco encarceram milhares de pessoas negras, moradoras de bairros periféricos, sem que tenham cometido crime algum.

Em abril de 2024, o caso de Francisco foi julgado pelo STF (Supremo Tribunal Federal), e novamente a justiça negou o HC. O Ministro Edson Fachin, relator do caso no STF, defendeu a absolvição do réu em razão da ilegalidade da abordagem. Seu voto ficou conhecido por fixar a tese do perfilamento racial. Entretanto, dos 10 (dez) votantes da corte, apenas 03 (três) pensaram dessa mesma forma. Paradoxalmente, a mesma corte que fez uso de critérios subjetivos para manter a condenação de Francisco — abordagem em local conhecido como ponto de tráfico e mudança de semblante – definiu que:“A busca pessoal, independente de mandado judicial, deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física”.

Enquanto a justiça estabelece, mas não aplica critérios objetivos para conferir validade às abordagens policiais, o perfilamento racial segue contribuindo para o encarceramento em massa da população negra não só no estado de São Paulo, mas em todo o país. Segundo estudo realizado pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa, pessoas pretas e pardas têm 4,5 vezes mais chances de serem abordadas por policiais no Rio de Janeiro e em São Paulo. O dado encontra correspondência em pesquisas sobre outras partes do país, que verificam que a maioria dos profissionais de segurança pública percebem que a população negra é priorizada nas abordagens realizadas pela polícia. Quando questionados se, em serviço, estivessem diante de dois indivíduos, um branco e um negro, qual seria abordado primeiro, 28% dos policiais afirmaram que abordariam o negro primeiro, enquanto apenas 11% fariam o contrário.

Diante desse cenário, ao manter a condenação de Francisco, o Judiciário permanece produzindo e reproduzindo a lógica racista das políticas de Segurança Pública, reforçando assim o racismo institucional que guia o cenário de violações de Direitos Humanos no Brasil.

Rhoana Lersch Oliveira é bacharel em Direito pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e integrante do Programa de Formação em Pesquisa do LAUT.

Pedro Ansel é doutor em sociologia pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e pesquisador do LAUT.

 

Fonte: Nexo | Imagem: Perfilamento Racial de Mark Konig, Unsplash.

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