[Ilustração: Ben Jennings, The Guardian, 14.08.2017]

 

Por Petrônio Domingues

 

Donald Trump revitaliza o racismo estrutural dos EUA, transformando ansiedades econômicas e demográficas em uma cruzada supremacista que desafia a ordem multicultural e alimenta tensões globais

1.

O advento do fenômeno Donald Trump, em sua complexidade, denota uma dimensão racializada, que mobiliza narrativas e representações historicamente constituídas da cultura política racista estadunidense, atualizando-as para os debates e embates político-ideológicos do tempo presente. Em última instância, o trumpismo vocaliza um projeto de nação fundado nos postulados da supremacia branca.

Desde a campanha eleitoral em 2016, que redundou no seu primeiro mandato como presidente e foi coordenada pelo supremacista Steve Bannon, Donald Trump tem utilizado motes racistas que catalisam vários grupos supremacistas dos Estados Unidos, entre eles a tradicional Ku Klux Klan.

slogan “Fazer a América Grande Novamente”, que se popularizou por meio dos bonés com a sigla MAGA, não convocava somente a sociedade para aderir a uma nova agenda para recuperar economicamente a nação, mas também comunicava aos segmentos da população branca que o projeto de Donald Trump para o país desafiava a “América multicultural” de Barack Obama, que representava uma nação inclusiva que incorporava as “minorias étnicas” como sujeitos históricos das narrativas que organizam o excepcionalismo estadunidense.

Isto é, “parte da interpretação dos problemas econômicos e sociais dos Estados Unidos foram enquadrados pelo discurso de Donald Trump como problemas raciais, em discursos que afirmavam que as elites passaram a negligenciar as condições dos segmentos populares da população branca”.[1]

Na campanha eleitoral em 2024, Donald Trump voltou a explorar o espantalho da racialização. Em um contexto de aumento da população não branca e de percepção de declínio das populações brancas, os arautos da supremacia, que estavam militando especialmente em fóruns subterrâneos, sobretudo da internet, revitalizaram sua retórica racial na gestão Joe Biden (2021-2025) e se lançaram à esfera pública motivados pelo discurso codificado da campanha presidencial de Donald Trump.

2.

A raça, como marcador estruturante da sociedade estadunidense, foi um dispositivo acionado em vários momentos para respaldar as narrativas dos supremacistas. Basta dizer que o filme Nascimento de uma nação (1915), que celebrava a ascensão da Ku Klux Klan e o papel dessa organização na remissão dos brancos do Sul, teve uma exibição na Casa Branca, com a presença do diretor David Griffith. O então presidente da República, Woodrow Wilson, teceu loas à produção e ainda prometeu apoiá-la, contrapondo-se à militância negra, que havia feito campanha para proibir a sua circulação.

A raça também foi um marcador agenciado para legitimar as ações no plano externo dos Estados Unidos. Em diversos momentos, a projeção do país na agenda internacional não teve somente um sentido econômico, mas também se valeu de argumentos e justificativas de uma superioridade como nação branca, atuando em uma ordem global com uma maioria de populações “inferiores” que deveria ser governada e tutelada pelas “nações civilizadas”.

Essa lógica reeditou-se no “intervencionismo de Theodore Roosevelt e também na agenda liberal de autodeterminação dos povos de Woodrow Wilson, que não se estendia necessariamente para as nações não brancas”. [2]

No entanto, o compromisso de difundir os valores liberais internacionalmente era subvertido pelas práticas racistas da supremacia branca no plano interno. Esse quadro só sofreu mudanças a partir da década de 1960, quando as organizações negras e suas lideranças – como Martin Luther King Jr. E Malcom X – desafiaram o regime de segregacionismo racial do Sul do país, o que levou aos presidentes democratas John Kennedy e Lyndon B. Jonhson a encamparem leis que promoviam a igualdade racial no campo dos direitos civis.

Em que pese visões supremacistas terem perdido espaço no imaginário político e, por conseguinte, na concepção sobre a democracia estadunidense, os supremacistas continuaram a se articular, disseminando teorias conspiratórias sobre as relações raciais e um discurso virulento contra negros e imigrantes. Mesmo no período mais recente do governo Barack Obama (2009-2017), no qual se acreditou estabelecer uma ordem pós-racial, expressões culturais da supremacia branca continuaram a ser reproduzidas e a alimentar o imaginário popular em diferentes partes do território.

Os setores liberais da sociedade estadunidense interpretaram a mensagem de Obama como uma adesão à profecia pós-racial, porém, “entre parcela dos conservadores e a maioria dos supremacistas a mensagem foi entendida como uma ameaça à população branca e, principalmente, à ideia da branquitude como traço definidor do excepcionalismo estadunidense”.[3]

É nesse contexto que se projetou a figura de Donald Trump, com um discurso agressivo antissistema, de ataques às elites do país – de alternativa aos democratas e republicanos moderados –, ao politicamente correto e às minorias, capitalizando os descontentamentos, para não falar ressentimentos, da população branca.

O discurso extremista e performático de Donald Trump, que se arvora o salvador da pátria alheio às dinâmicas políticas das elites e capaz de recuperar a pujança econômica da nação, incorporou o léxico de supremacistas brancos, abrindo espaço para uma reação à ordem social liberal e multicultural nos Estados Unidos.

Com Donald Trump no poder e o seu histórico de afinidades com a Ku Klux Klan, os neonazistas e outros grupos racistas, os supremacistas encontraram um cenário fértil para potencializarem a cruzada em prol da redenção da população branca.

Neste segundo mandato, iniciado em janeiro de 2025, o trumpismo, em seu caráter racial, tem revelado a capacidade mutante de recompor categorias e representações da cultura racista estadunidense e reconfigurá-las conforme os embates domésticos e internacionais.

Esse processo não se restringe às tensões raciais que afetam os negros, mulçumanos, imigrantes latino-americanos, pois, atualmente, os chineses travestem-se de ser o “bode expiatório”. Como alguns especialistas indicam, o protagonismo da China suscita o sentimento de insegurança nos ocidentais e faz florescer a ideia do “perigo amarelo”, que ameaça a supremacia branca.

Embora haja uma tendência de se imaginar as relações raciais nos Estados Unidos a partir da bipolaridade entre pessoas euro e afrodescendentes, a supremacia racial opera com a lógica de que as populações brancas têm a prerrogativa de arbitrar as relações sociais ou interestatais e evitar que os sujeitos estigmatizados desequilibrem os arranjos institucionais que garantem as assimetrias simbólicas e materiais.

Em um momento em que os Estados Unidos enfrentam a ameaça chinesa à sua hegemonia e procuram repactuar o sistema da geopolítica global, Donald Trump aciona a gramática supremacista, jogando pá de cal sobre o discurso de direitos humanos que foram instituídos pelas organizações internacionais após a Segunda Guerra Mundial.

A conjuntura de crise econômica, a mudança na correlação de forças étnico-raciais de acordo com o censo demográfico e a instabilidade na vida dos segmentos populares brancos contribuem para o recrudescimento da ideologia supremacista, que mina com o paradigma pós-racial, a ordem liberal retoricamente inclusiva e, no limite, com a própria democracia estadunidense que, em sua dimensão racial, sempre reservou espaço para narrativas de superioridade branca por meio do projeto de uma “America for the Americans”.

*Petrônio Domingues é professor de história na Universidade Federal de Sergipe (UFS). Autor, entre outros livros, de Protagonismo negro em São Paulo (Edições Sesc). [https://amzn.to/4biVT9T]

Notas


[1] FRANCISCO, F. T. R. O velho Cadillac: raça, nação e supremacia branca na era Trump. Sankofa: Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana,São Paulo, v. 13, no. 24, p. 8-34, nov. 2020, p. 9.

[2] Idem, ibidem, p. 15.

[3] Idem, ibidem, p. 22.

 

Fonte: A Terra é Redonda | Ilustração: Ben Jennings, The Guardian, 14.08.2017.

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