Por Ernest Harsch | Tradução Pedro Silva

Resenha do livro My Country, Africa: Autobiography of the Black Pasionaria [Meu País, África: Autobiografia da Pasionaria Negra], de Andrée Blouin (Verso Books, 2025).

 

As memórias da revolucionária centro-africana Andrée Blouin contam a história de uma mulher que testemunhou em primeira mão os eufóricos altos e os trágicos baixos da luta pela independência na África.

Andrée Blouin foi uma das aliadas mais próximas de Patrice Lumumba, o carismático político congolês que liderou seu país na luta por independência antes de seu assassinato em 1961. Críticos estadunidenses e belgas do líder assassinado frequentemente desprezavam Blouin. Para eles, ela era uma “fanática”, possivelmente uma agente comunista, certamente uma forte opositora ao poder ocidental. Quase quarenta anos após sua morte em 1986, aos 64 anos, Andrée caiu um pouco no esquecimento.

A recente reedição de sua autobiografiaMy Country, Africa: Autobiography of the Black Pasionaria, há muito tempo fora de catálogo, comprova como sua importância é duradoura. Ela ressurge em um momento de renovado interesse pela política da África Central. O premiado documentário de 2024 de Johan Grimonprez sobre a relação desconfortável do jazz estadunidense com o império, Trilha Sonora Para Um Golpe de Estado, a cita extensivamente. Essa atenção renovada já era necessária. Sua história de vida é um relato notável de luta pessoal e política de uma pessoa verdadeiramente extraordinária.

Assim como acontece com muitos ativistas, o engajamento de Andrée foi moldado por experiências pessoais. O final da era colonial, quando os povos subjugados do continente começavam a se mobilizar em grande escala para se livrar da dominação estrangeira, foi o pano de fundo de sua vida. Muita coisa parecia possível. No entanto, o otimismo frequentemente terminava em decepção. Os líderes mais conservadores do continente viam a soberania principalmente como uma substituição de rostos europeus por africanos, deixando intactas as fronteiras e as relações sociais existentes fomentadas pelo colonialismo.

Blouin optou por se aliar aos interesses das pessoas comuns e encarou a luta política em termos pan-africanistas, em vez de nacionalistas. Seu “país” não tinha uma bandeira, mas várias.

Trauma pessoal e amadurecimento

Andrée nasceu em 16 de dezembro de 1921. Seu pai era um empresário francês e sua mãe, a filha de quatorze anos de um chefe banziri na colônia francesa de Oubangui-Chari, atual República Centro-Africana. Com apenas três anos, Blouin foi enviada para um orfanato católico em Brazzaville, capital do pequeno Congo sob domínio francês, do outro lado do rio em relação à colônia belga homônima, muito maior.

O orfanato onde passou a infância foi criado para meninas mestiças indesejadas, culpadas do “pecado” de terem nascido de relações entre europeus e africanas. Era, como Andrée disse em seus últimos anos, “uma espécie de lixeira para os resíduos desta sociedade em preto e branco…” As freiras do orfanato, ela lembrou, eram especialmente severas. Regulavam a alimentação das meninas e as puniam pela menor infração. Blouin rapidamente desenvolveu a reputação de encrenqueira.

Aos dezessete anos, Andrée e duas amigas escaparam escalando os muros do orfanato. Para ela, havia tantas paisagens, sons e costumes novos fora daqueles muros que era impossível permanecer ali. Em “My Country, Africa”, Andrée escreve que “observava com os olhos ardentes de quem havia sido privada de sua África por quatorze anos”.

Nos anos seguintes, ela viveu em diferentes colônias francesas e belgas, trabalhou como costureira, administrou uma empresa de transporte e uma plantação (com cem funcionários), administrou seu próprio negócio de entrega de encomendas e escreveu poesias premiadas.

Longe das garras das freiras do orfanato, que planejavam casamentos precoces entre Andrée e outros órfãos mestiços, ela estava livre para buscar seus próprios relacionamentos. Os dois primeiros foram com homens europeus, “da raça que tantas vezes me feriu”. Ambas as uniões acabaram fracassando, mas lhe deram dois filhos, uma menina e um menino. Quando seu filho, aos dois anos, adoeceu gravemente com malária, ela tentou obter quinino para tratá-lo. Mas as autoridades francesas reservaram o medicamento “apenas para brancos”. Seu filho morreu, uma tragédia que, como ela escreveu em suas memórias, “me politizou como nada mais poderia”.

Renascimento na Guiné

Em 1948, Andrée conheceu um ex-oficial de artilharia e especialista em mineração francês chamado André Blouin. O casal se casaria quatro anos depois, permaneceria junto por um quarto de século e teria dois filhos. Ao contrário de muitos outros homens brancos na África, André “havia escapado da mentalidade colonialista”, escreveu ela.

O casal mudou-se para a Guiné, na África Ocidental, depois que André conseguiu um emprego pesquisando a mineração de ouro de aluvião no país. A década de 1950 foi um período político efervescente em toda a África, e André apoiou a atividade da esposa durante todo esse período. Na Guiné, o partido nacionalista mais forte era a seção local do Rassemblement Démocratique Africain (RDA), partido regional liderado por Ahmed Sékou Touré, um fervoroso líder sindical. Andrée teve suas próprias visões em desenvolvimento cristalizadas pela determinação de Touré em alcançar a independência genuína do domínio colonial. O entusiasmo dele, escreveu ela, lhe fez “nascer de novo”.

A questão mais urgente para a RDA era um referendo convocado pelo presidente francês Charles de Gaulle, no qual os eleitores das colônias escolheriam se queriam ou não pertencer a uma nova “Comunidade” francesa, que manteria laços militares, diplomáticos e econômicos com a metrópole. A RDA de Touré viu isso como uma manobra para perpetuar a dominação francesa e fez campanha pelo voto no “não”. Andrée entrou na briga avidamente, viajando centenas de quilômetros com ativistas da RDA. Por duas vezes, ela e vários companheiros quase morreram em misteriosos “acidentes” de trânsito. As autoridades logo ordenaram sua expulsão e demitiram seu marido do emprego.

Quando a maioria dos guineenses votou “não” — tornando-se a única das dezoito colônias africanas da França a fazê-lo — André e Andrée já haviam fugido do país. Com Touré no comando, os Blouin retornaram, ele para trabalhar para o governo e ela para promover ainda mais as causas pan-africanas. Através de Touré, ela conheceu o presidente de Gana, Kwame Nkrumah, e gravou um apelo de rádio às mulheres africanas para defenderem a unidade continental, em uma transmissão transmitida em francês e inglês.

Antes de retornar à Guiné, Andrée já havia se envolvido em diversas iniciativas diplomáticas próprias. Ela mediou uma cisão política entre os presidentes da República Centro-Africana e do Congo-Brazzaville, e outra entre partidos em conflito dentro do Congo-Brazzaville. Neste último caso, sua intervenção ajudou a pôr fim a conflitos que haviam ceifado centenas de vidas.

Lutando por um Congo livre

O ano de 1960 foi crucial para a África. Dezessete colônias conquistaram sua independência. França, Grã-Bretanha e Bélgica decidiram que manter um governo formal estava se tornando muito arriscado e começaram a buscar novas maneiras menos formais de manter a influência econômica e política. As ambiguidades desse processo eram mais gritantes no Congo, o vasto território rico em recursos que os belgas haviam saqueado por décadas.

Embora Andrée já tivesse passado algum tempo no Congo, tendo inclusive aprendido algumas línguas congolesas, sua introdução à política do país aconteceu por acaso. Um dia, em um restaurante na capital guineense, ela ouviu vários congoleses falando lingala e puxou conversa com eles nessa língua. Um deles era Pierre Mulele, líder do Partido Solidário Africano (PSA), que estava na Guiné na esperança de obter o apoio de Touré. Logo, o chefe do PSA, Antoine Gizenga, a convidou para ajudar a mobilizar as mulheres congolesas. Com a bênção de Touré, ela concordou.

No início de 1960, Andrée passou meses viajando por Kwilu e outras províncias congolesas, discursando em comícios para milhares de mulheres e homens com uma caravana do PSA. Ela organizou uma associação de mulheres pró-independência, que até o final de maio havia recrutado 45.000 membros. Na fronteira com Angola, sob domínio português, ela também ajudou a estabelecer uma vila de refugiados angolanos, uma das primeiras bases de retaguarda para os rebeldes do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).

As autoridades belgas buscaram manter os congoleses fragmentados, explorando divisões étnicas e promovendo correntes mais conservadoras contra aquelas alinhadas com Lumumba. Também se irritaram com a influência de Andrée, denegrindo-a por ser mulher e agente comunista estrangeira. Apesar das fortes objeções de Lumumba, ordenaram sua expulsão. Ao deixar o país, Andrée levou consigo um documento assinado pela maioria dos partidos congoleses. A divulgação desse documento à mídia internacional ajudou a minar o plano da Bélgica de contornar Lumumba, entregando o poder a um moderado.

Em 30 de junho de 1960, com Lumumba como primeiro-ministro, o Congo conquistou a independência formal. Ouvindo rádio na Guiné, Andrée acompanhou seu discurso contundente. As palavras já lhe eram familiares, visto que a redação do discurso proferido por Lumumba — destinado a se tornar uma das críticas mais famosas ao colonialismo — contou com sua colaboração antes da prematura partida. Sempre discreta, ela não mencionou esse detalhe em sua autobiografia; sua filha Eve o relata no epílogo de “My Country, Africa, citando como prova o depoimento de um agente de segurança congolês.

Com esperanças frustradas — mas perseverante

Apedido de Lumumba, Andrée retornou ao Congo, onde se tornou sua chefe de protocolo. Mas eles tiveram pouco tempo para construir o novo Estado independente. Políticos e empresários belgas continuaram promovendo uma série de divisões e opositores, incluindo uma secessão na província de Katanga, rica em minerais. A CIA recrutou um jovem coronel do exército, Joseph-Désiré Mobutu (mais tarde Mobutu Sese Seko), que logo derrubou Lumumba em um golpe militar. Andrée foi novamente expulsa.

Por vários meses, o caos reinou. Mercenários da Bélgica, África do Sul e de outros lugares invadiram o Congo. As forças de paz das Nações Unidas foram ineficazes de maneira geral, mas, em alguns casos, sabotaram os esforços nacionalistas para manter o controle. Forças pró-Lumumba lideradas por Gizenga tentaram mobilizar a oposição. Ao tentar se juntar a elas, Lumumba foi capturado, levado para Katanga e assassinado.

Andrée estava na Suíça em janeiro de 1961 quando soube da morte de Lumumba. Aos jornalistas que a abordaram e pediram que comentasse, ela disse que “todas as palavras inflamadas, as manifestações apaixonadas que foram a essência dos meus dias por tanto tempo, acabaram drenadas de mim com esta perda. Eu não conseguia falar”.

Fortalecida por uma vida inteira de dificuldades e decepções, Andrée finalmente se recuperou. Em 1962, após a vitória da Argélia na guerra de independência contra a França, ela e sua família se mudaram para Argel. Pelo menos durante a década seguinte, a capital argelina serviu como uma “Meca” para revolucionários do mundo todo, como disse o lendário líder guerrilheiro da Guiné-Bissau, Amílcar Cabral.

Andrée escrevia regularmente para o El Moudjahid, o jornal da Frente de Libertação Nacional da Argélia. O presidente argelino, Ahmed Ben Bella, a encarregou de supervisionar a ajuda humanitária aos órfãos da luta congolesa. Ela liderou a rebelião massiva de rebeldes “lumumbistas” que abalou o leste do Congo no início e meados da década de 1960, liderada em Kwilu por seu velho amigo Mulele.

Ela era frequentemente visitada por uma gama diversificada de revolucionários da África do Sul, Moçambique, Angola, Eritreia e outras frentes africanas, até mesmo palestinos e Panteras Negras estadunidenses. Sua sala de estar, brincava, era “a chancelaria dos Estados Unidos da África”.

Após se mudar para Paris, onde morreria de câncer em 1986, ela continuou escrevendo ensaios e livros ao longo das décadas de 1970 e 1980, incluindo sua autobiografia, publicada pela primeira vez em 1983, mas que estava esgotada até essa reedição pela Verso Books. Segundo sua filha Eve Blouin, Andrée permaneceu convencida até o fim de que a revolução pan-africana superaria todas as intrigas neocoloniais e que “o futuro pertencia à unidade dos povos livres e soberanos”.

Quase quarenta anos após sua morte, o valor da obra de Andrée permanece em suas avaliações sóbrias das perspectivas e objetivos de muitos líderes africanos proeminentes, nas descrições comoventes dos sofrimentos humanos e nas análises profundas e severas das muitas injustiças e absurdos do colonialismo.

Sobre o autor

Trabalhou em questões africanas por mais de duas décadas nas Nações Unidas e atualmente é professor adjunto da Columbia University. Seu livro mais recente é Thomas Sankara: An African Revolutionary (Ohio University Press, 2014).

 

Fonte: Jacobin Brasil.

Banner Content
Tags: , , ,

Related Article

0 Comentários

Deixe um comentário

MÍDIA NEGRA E FEMINISTA, ANO XX – EDIÇÃO Nº241 – ABRIL 2025

Siga-nos

INSTAGRAM

Arquivo