O estudo, intitulado “Contratos, Códigos e Controle: A Influência das Big Techs no Estado Brasileiro”, foi realizado por pesquisadores da USP e da Universidade de Brasília. Ele analisa a influência das grandes empresas de tecnologia (big techs) no setor público brasileiro, revelando que o governo brasileiro gasta grandes quantias com produtos e serviços estrangeiros, enquanto universidades e centros de pesquisa enfrentam dificuldades financeiras. O estudo aponta que essa escolha representa uma inversão de prioridades, com o governo priorizando a inovação estrangeira em detrimento do desenvolvimento tecnológico nacional.

 

Ergon Cugler, coordenador do estudo e pesquisador da FGV, critica a decisão do governo, afirmando que o dinheiro público está sendo usado para financiar a inovação em outros países, em vez de ser investido em inovação nacional. Ele defende que o fortalecimento da capacidade científica nacional, a geração de empregos qualificados e o desenvolvimento de soluções tecnológicas próprias são prejudicados por essa política.

 

A pesquisa também levanta preocupações sobre a dependência tecnológica do Brasil em relação a grandes empresas estrangeiras, com potenciais impactos negativos na soberania tecnológica do país.

 

*Texto dos pesquisadores para o Jornal da USP

 

O setor público brasileiro, nas esferas federal, estadual e municipal, contratou pelo menos R$ 23 bilhões em licenças de software, nuvem, segurança digital e softwares de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) entre 2014 e 2025 – valor superior ao orçamento de diversos Ministérios federais. A estatística é revelada pelo estudo Contratos, Códigos e Controle: A Influência das Big Techs no Estado Brasileiro, realizado por pesquisadores da USP e da Universidade de Brasília (UnB). Apenas entre junho de 2024 e junho de 2025, o gasto com produtos tecnológicos internacionais superou R$ 10,35 bilhões, valor que cobriria por um ano o pagamento de bolsas a todos os 350 mil mestrandos e doutorandos do País.

“A escolha revela uma inversão de prioridades que compromete o futuro do País. Não faz sentido o Brasil gastar bilhões de reais em contratos com fornecedores estrangeiros de tecnologia enquanto nossas universidades e centros de pesquisa operam com orçamentos apertados há décadas”, afirma Ergon Cugler, coordenador do estudo, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo e integrante do Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovações na Gestão Pública (Getip) da USP.

“Estamos enviando dinheiro público para sustentar a inovação em outros países, quando poderíamos investir esse mesmo valor aqui, fortalecendo a capacidade científica nacional, gerando empregos qualificados e desenvolvendo soluções tecnológicas próprias.”

homem jovem, cabelos e barbas curtos, usa óculos arredondados, um terno escuro e camisa clara

Ergon Cugler – Foto: Reprodução/X

O setor público brasileiro contratou pelo menos R$ 23 bilhões em TIC entre 2014 e 2025, sem contar sobreposições nem dados não padronizados, sendo R$ 10,35 bilhões apenas no último ano. A análise das bases ComprasNet e Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) permitiu estimar esse valor piso, revelando a dimensão dos investimentos em tecnologia estrangeira, ainda que o número real possa ser significativamente maior devido à fragmentação das bases da União e inconsistência dos dados. O trabalho mostra que com a quantia já destinada à aquisição de tecnologia estrangeira, nos últimos dez anos, seria possível construir e inaugurar pelo menos 86 data centers de alto padrão no Brasil.

A pesquisa também estima que o valor de R$ 10,35 bilhões é suficiente para pagar bolsas a todos os 350 mil pós-graduandos do País durante um ano inteiro, considerando 100 mil doutorandos a R$ 3.300 mensais e 250 mil mestrandos a R$ 2.100 por mês, segundo os valores da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Em outra comparação feita no estudo, esse mesmo valor manteria o funcionamento da UnB, com todos os custos operacionais, de corpo docente e demais previsões no orçamento, por até quatro anos e meio.

Demanda pública como motor de desenvolvimento

No recorte do atual mandato, entre janeiro de 2023 e junho de 2025, as três esferas do setor público brasileiro contrataram R$ 5,97 bilhões em licenças de software, R$ 9 bilhões em soluções de nuvem e R$ 1,91 bilhão em segurança digital. O estudo mostra que quatro grandes empresas lideram as contratações públicas federais de tecnologia, com Microsoft, Oracle, Google e Red Hat concentrando volumes bilionários. A Microsoft sozinha aparece com R$ 3,27 bilhões no ComprasNet, sendo R$ 1,65 bilhão apenas no primeiro semestre de 2025. No PNCP, Oracle (R$ 1,02 bilhão), Google (R$ 938 milhões) e Red Hat (R$ 909 milhões) dominam os contratos desde 2022. Licenças de softwares da Microsoft foram negociadas a R$ 3,27 bilhões nas três esferas, sendo R$ 1,65 bilhão só no primeiro semestre de 2025. Serviços de nuvem da Oracle somaram R$ 1,02 bilhão, seguido do Google, com serviços vendidos a R$ 938 milhões, e Red Hat, com R$ 909 milhões em serviços vendidos.

Os pesquisadores ressaltam que esses serviços, licenças e softwares, em boa parte, são negociados por CNPJs de terceiros, o que demonstra a existência de um mercado especializado em intermediação de licenças de software para o setor público. “Cada contrato fechado com uma multinacional é uma porta fechada para startups brasileiras, institutos públicos e redes de universidades que já têm competência técnica para entregar soluções de ponta”, aponta Cugler. “Estamos perdendo a chance de transformar demanda pública em motor de desenvolvimento. A tecnologia comprada de fora não volta em forma de emprego, renda ou autonomia. A tecnologia feita aqui dentro, sim.”

Imagem: Reprodução do artigo

Para ele, o que está em jogo não é só o valor dos contratos, mas o tipo de país que queremos construir. “O Brasil tem infraestrutura, cérebros e rede pública qualificada para oferecer alternativas robustas”, enfatiza. “Mas, para isso acontecer, é preciso uma decisão estratégica: investir no que é nosso. Com os mesmos recursos, que hoje sustentam big techs, poderíamos financiar datacenters nacionais, ciência aberta, segurança digital sob jurisdição própria e gerar milhares de empregos qualificados. É uma escolha que pode mudar nossa ciência.”

A pesquisa foi realizada pelo Getip, vinculado ao Observatório Interdisciplinar de Políticas Públicas Prof. Dr. José Renato de Campos Araújo (OIPP), coordenado pelo professor José Carlos Vaz da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, e o Grupo de Trabalho Estratégia, Dados e Soberania do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional (Gepsi Data) do Instituto de Relações Internacionais da UnB. O trabalho, assinado por Ergon Cugler, Isabela Rocha, José Carlos Vaz, Camila Modanez e Julia Veneziani está disponível em formato de nota técnica e também na versão completa.

 

Riscos à soberania digital brasileira

Um dos aspectos mais preocupantes desse cenário é o risco à segurança de dados estratégicos nacionais. Quando o Brasil contrata serviços de armazenamento e processamento de empresas estrangeiras, informações sensíveis – como prontuários médicos do SUS, dados de inteligência ou sistemas de defesa – podem acabar processados em servidores localizados fora do país.

Esses dados ficam sujeitos a legislações como o Cloud Act americano, que permite ao governo dos EUA requisitar informações de empresas sediadas em seu território, mesmo quando os dados estão armazenados fisicamente em outras nações. Essa vulnerabilidade representa uma ameaça concreta à soberania nacional no ambiente digital.

Outro problema identificado pelo estudo é a prática de contratação de soluções prontas e proprietárias através de revendedores locais. Esse modelo dificulta o rastreamento dos contratos e mascara os fornecedores reais, criando uma camada adicional de opacidade no uso de recursos públicos.

Para enfrentar esses desafios, os pesquisadores recomendam a criação de uma nuvem pública federada para o armazenamento de dados em solo brasileiro, além da adoção prioritária de softwares desenvolvidos por empresas ou universidades nacionais. Também sugerem que o governo exija licenciamento aberto e interoperabilidade nas compras públicas.

O debate sobre a dependência tecnológica ganha ainda mais relevância no atual contexto geopolítico, onde o governo Trump tem se alinhado às grandes empresas de tecnologia americanas para pressionar diversos países, incluindo o Brasil, contra tentativas de regulação do setor digital.

“Carta pela Soberania Digital”

Organizações da sociedade civil brasileira lançaram a Carta pela Soberania Digital, elaborada por uma ampla articulação que resultou na criação da Rede Nacional pela Soberania Digital, que visa ampliar a pressão institucional e social sobre o tema.

O documento enviado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), pede atenção urgente para a questão tecnológica como elemento essencial da soberania nacional. Os signatários pedem uma ação urgente para frear o avanço das multinacionais de tecnologia sobre os sistemas públicos brasileiros. A carta é resultado direto do Encontro Nacional “Soberania Já!”, realizado nos dias 8 e 9 de julho de 2025 em Brasília, reunindo parlamentares, pesquisadores, movimentos sociais, universidades, sindicatos, hackers e comunidades tecnológicas de todas as cinco regiões do país.

Na avaliação das entidades, a soberania brasileira está ameaçada por um modelo de submissão tecnológica, agravado pelas regras que proíbem universidades e instituições públicas de adquirirem infraestrutura própria, o que obriga o uso de serviços estrangeiros de computação em nuvem. O documento também critica a atuação do SERPRO, da DATAPREV e da RNP, que, segundo os signatários, operam como “barriga de aluguel das big techs”.

“É uma soberania de mentira, pois entregam de mão beijada nossos dados estratégicos ao Cloud Act dos Estados Unidos”, diz o texto, em referência à legislação que permite ao governo norte-americano acessar dados armazenados por empresas dos EUA em qualquer parte do mundo.

As organizações acusam essas corporações de venderem “soberania enlatada” sob o rótulo de inovação e modernidade. “O que antes se vendia como inovação e empreendedorismo, hoje se revela como projeto de dominação, manipulação e concentração de capital e de poder”, diz a carta.

Os signatários afirmam que, apesar dos esforços do governo federal, há três grandes obstáculos para a construção da soberania digital no país: a fragmentação do tema entre ministérios e no Congresso, sem uma estratégia unificada; a falta de diálogo efetivo com a sociedade civil organizada, que já acumula experiência e propostas; a atuação das big techs, que “se dizem comprometidas com a soberania, mas na prática sabotam qualquer avanço real”.

Como alternativa, o movimento propõe a criação de uma Força Tarefa Colaborativa com participação do governo, academia e sociedade civil, com o objetivo de elaborar um Plano Nacional para Soberania Digital com ações de curto, médio e longo prazo. “Queremos construir juntas e juntos. Mas para isso, precisamos falar a verdade: a soberania digital do Brasil está sendo desmontada, e está sendo vendida como inovação.”

A carta também contextualiza o alerta com a recente ofensiva dos Estados Unidos contra o Brasil, que teria evidenciado, segundo os autores, “as vulnerabilidades do país em relação às grandes potências e suas empresas tecnológicas”.

Diante desse cenário, as entidades solicitam uma audiência com o presidente Lula e pedem que o governo olhe com mais atenção para a sociedade civil. “É preciso olhar para os coletivos, territórios, comunidades e universidades para perceber que há exemplos de uso do saber inclusivo, democrático, que pode ser o ponto de partida para construir um futuro soberano”.

 

Leia e Assine:

Carta pela Soberania Digital

 

Fonte: Jornal da USP, RT Brasil e Brasil 247.

 

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