Especial Rede GIFE: Black Philanthropy Mont (BPM 2025)

A memória como alicerce, a reparação como prática e o futuro como projeto coletivo

A desconcentração de poder, recursos e saberes é um desafio para a filantropia negra e o Investimento Social Privado no Brasil. No dia 26 de agosto, o Museu do Amanhã (RJ) recebe o Mês da Filantropia Negra 2025 (BPM). Com o tema “Sankofa: Memória e Reparação”, o evento reunirá lideranças e organizações para debater o papel político da filantropia no enfrentamento ao racismo e na promoção da justiça social.

No Brasil, organizações lideradas por pessoas negras vêm mostrando secularmente que doar recursos, tempo e saberes pode ser um ato político e transformador. Na perspectiva do terceiro setor, a chamada filantropia negra resgata práticas ancestrais de solidariedade, cuidado e coletividade para enfrentar os efeitos do racismo e promover mudanças reais na vida da população negra na busca por reparação.

Na filosofia africana, o símbolo Sankofa, um pássaro que olha para trás enquanto carrega um ovo no bico, ensina que é preciso revisitar o passado para seguir adiante com sabedoria. Princípio fortemente observado por Rosana Fernandes, da equipe de Projetos e Formação da Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE).

“A filantropia negra no Brasil é o processo de cooperação coletiva de um grupo de pessoas em torno de uma causa comum. É o enfrentamento ao racismo e, historicamente, uma atuação por liberdade plena.”

A memória, nesse contexto, não é apenas lembrança: é ferramenta de enfrentamento, continua Rosana, que ainda observa que lembrar o que foi negado – território, liberdade, cidadania, vida – é o que torna possível reivindicar o que é devido.

“Reparar é reconhecer que a desigualdade racial no Brasil é resultado de escolhas históricas, e que o combate a essa realidade exige investimento consciente e direcionado.” 

Doutoranda em História pela Universidade de Brasília (UNB), e ativista pelo Bem Viver, Janira Sodré acredita que o princípio de Sankofa mostra que em tempo algum será tarde demais para resgatar o que ficou para trás. “Quando pensamos no abismo de desvantagens para a população negra no Brasil, percebemos que as violências, silenciamentos e expropriações moldam o presente. A justiça reparatória principia no reconhecimento dessa gigantesca dívida histórica.”

Para ela, gestos simbólicos não são o suficiente. Mas sim um compromisso político e ético, que se efetiva com a oportunidade ofertada para a reconstrução de vidas e trajetórias negras.

“Sankofa é acerca de entregar de volta à riqueza às mãos que sempre souberam cultivar comunidades e garantir a vida.”

JANIRA SODRÉ, Universidade de Brasília

Para Richard Santos, escritor e doutor em Ciências Sociais, a escolha do tema “Sankofa: Memória e Reparação” para o Mês da Filantropia Negra 2025 (BPM) é estratégica. “Sankofa nos convida a olhar para o passado não como um fardo, mas como um reservatório de sabedoria e diretrizes para agir no presente e reconfigurar o futuro.”

O pesquisador reforça que reparar significa redistribuir poder, rever narrativas, descolonizar políticas públicas e refundar a própria ideia de Estado a partir dos sujeitos historicamente minorizados. Lembra ainda que a filantropia negra não é novidade. Presente nas irmandades, quilombos, terreiros e associações de ajuda mútua do pós-abolição, no entanto, foram ignoradas pelo Estado.

“Agora, essa filantropia precisa se articular de forma estratégica com políticas reparatórias. Isso significa apoiar iniciativas que promovam autonomia econômica, soberania alimentar, educação antirracista, economia solidária, ciência negra e protagonismo político.”

RICHARD SANTOS, escritor

Do passado expropriado ao futuro construído: o desafio do ISP

A filantropia negra atua para além da lógica assistencialista, com responsabilidade política em meio às dificuldades para acessar recursos. Dados do “Diagnóstico sobre Filantropia e Raça”, do Fundo Agbara, mostraram que a captação é a principal problemática de 89% das organizações respondentes.

Censo GIFE 2022/2023 revelou que apenas uma parte dos investidores sociais trata a questão racial como foco principal em suas iniciativas; a maioria (55%) lida com o tema de forma transversal.

“Eu diria que a filantropia no Brasil ainda carrega o contexto histórico do racismo, da colonialidade através [dos ritos burocráticos].  Esses são requisitos legais muito duros e cruéis (…) há uma rigorosidade imensa documental e de registros para acesso aos recursos”, enfatiza Magno Cardoso, fundador do Instituto Filhos do Quilombo.

No eixo da memória, Janira Sodré, aponta que se trata de um campo fundamental para afirmar que a população negra moldou a cultura nacional em todas as esferas.

“Políticas de reparação que negligenciam a memória poderão repetir apagamentos. É urgente investir em políticas de memória negra, aportando novos olhares para os nossos arquivos vivos, museus afrorreferenciados e interculturais, contemplando pluralidades regionais e diversidade de linguagens e expressões.”

Já no que se refere à educação, Richard Santos, que coordena o grupo de pesquisa Pensamento Negro Contemporâneo (UFSB), faz um chamado para a compreensão da educação não apenas como direito individual, mas como ferramenta estratégica de reparação coletiva e instrumento de soberania epistêmica.

“A educação é central nas lutas do movimento negro porque é nela que se disputa o imaginário, se desenha o futuro e se enfrenta o epistemicídio. Construir uma educação reparatória é descolonizar os currículos, reterritorializar o saber, investir na memória coletiva e devolver à população negra o protagonismo sobre sua própria história.”

Para ele, essa tarefa vai muito além de inserir conteúdos sobre a história da África e da cultura afro-brasileira, mas construir uma nova gramática de poder e pertencimento. Por isso, explica, a educação não pode ser pensada apenas em sua dimensão formal, mas também a partir de metodologias de escuta, ancestralidade e memória, reconhecendo que os saberes das mães de santo, dos mestres de capoeira, das lideranças quilombolas e das juventudes periféricas.

Iracema Souza, gerente de Conhecimento e Advocacy do Fundo Agbara, chama atenção para um ator central do qual sente falta nesse tripé: o investimento em organizações negras que têm compromisso com um projeto político alicerçado no enfrentamento ao racismo.

“Não que necessariamente lidem apenas com essa pauta, porque as organizações negras são caracterizadas por uma interseccionalidade de atuação – que transitam entre cultura, educação, defesa de direitos – mas com o entendimento de que raça é um marcador social, e o racismo é uma estrutura de opressão.”

IRACEMA SOUZA, Fundo Abgara

Iracema ressalta que o levantamento feito pelo Agbara revela que cerca de 60% das organizações negras no Brasil mobilizaram até R$ 5 mil em 2023. Uma realidade que não garante sustentabilidade, especialmente quando muitos desses recursos são desembolsados pelos próprios integrantes das organizações.

“Como o ISP pensa num processo de justiça reparatória, e simplesmente não investe nessas organizações, e não as reconhecem como um ator estratégico? As empresas e instituições também precisam olhar para suas práticas, e como elas estão contribuindo para a concentração do poder, do dinheiro, dos privilégios”, alerta.

Dentro dessa perspectiva, Paulo Ramos, sociólogo, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), e um dos fundadores da plataforma AfroCebrap, afirma que é importante consolidar ações de longo prazo.

“É preciso fortalecer as instituições, colar nas propostas de ação afirmativa das universidades, criando uma agenda que seja englobante, que dê conta do processamento, estudo, difusão e inserção dos arquivos em programas de ensino, pesquisa, extensão, em todos os níveis de educação.”

PAULO RAMOS, AfroCebrap

Na premissa do BPM 2025, já há um desafio colocado: transformar o ISP em ponte entre expropriações que foram feitas no passado e o que será construído.

Instituto Ibirapitanga é uma das organizações que têm apostado em fortalecer essa atuação. No objetivo específico de valorização da memória negra, Juliana Maia, gerente do programa Equidade Racial do Instituto, conta que apoiam a infraestrutura da produção simbólica afro-brasileira.

Ela destaca que as políticas de apagamento da memória negra na sociedade brasileira foram amparadas por sistemas de arquivologia, museologia e preservação dos patrimônios culturais no Brasil. Juliana aponta que estes equipamentos foram estruturados a partir de uma lógica colonial, de sub-representação do legado africano e afro-brasileiro.

“Os desafios vão desde a produção de conhecimento à organização de acervos e infraestrutura física, passando por formulações complexas sobre memória, monumentos, o papel dos museus e a centralidade da história negra no Brasil. Residem aí possibilidades de atuação da filantropia.”

JULIANA MAIA, Ibirapitanga

“A filantropia decolonial e antirracista precisa se aperfeiçoar para atender de fato a realidade dessas comunidades. Aqueles e aquelas que fazem filantropia também precisam ter letramento racial, um preparo adequado para o trato com essas organizações.”

MAGNO CARDOSO, Instituto Filhos do Quilombo

A resistência do Estado brasileiro e suas elites em reconhecer o legado presente da escravidão de africanos e seus descendentes são, para Juliana Maia,  um desafio na busca da reparação – e o ISP não fugiu a esse contexto. Apesar desse cenário, ela observa a efervescência do debate no setor nos últimos cinco anos, e defende que  para superar esse projeto excludente de nação, é necessário fortalecer a presença de lideranças negras em espaços de poder e decisão, ampliando a capacidade de influência de organizações negras.

Diante desse quadro, o único caminho possível para Richard Santos é entender que transformar o ISP em ponte entre a expropriação e a reparação é mais que um desafio técnico: é um imperativo ético e político. “Sua medida será dada não pela retórica, mas pela coragem de bancar aquilo que historicamente sempre se negou: a autodeterminação dos povos negros”, finaliza.

Inscreva-se no BPM 2025

O Brasil precisa encarar sua história e investir no futuro com justiça. O Mês da Filantropia Negra 2025 chega com o chamado do princípio Sankofa: buscar no passado as chaves para transformar o presente e cultivar um amanhã com equidade. Neste ano, o evento acontece de forma híbrida, no dia 26 de agosto, no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, e propõe um novo olhar sobre a filantropia – não como caridade, mas como ato político de reparação. Vamos falar de:

Memória:

apoio a arquivos vivos e tecnologias negras de registro;

Reparação:

investimento em educação antirracista, economia afrocentrada e justiça social;

Futuro:

fortalecimento de lideranças negras que constroem novos caminhos de prosperidade.

O Mês da Filantropia Negra 2025 tem realização do The WISE Fund e do GIFE, com apoio da Aegea Saneamento.

 

 

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