O problema do modernismo brasileiro

 

Por Rafael Cardoso

 

Há vinte anos, Lauro Cavalcanti publicou um guia de arquitetura chamado Quando o Brasil era moderno (2001). O título rescende à mesma nostalgia poética de outro, então recente, Farewell to an idea: Episodes from a history of modernism (1999), o adeus ao modernismo pelo eminente historiador da arte T.J. Clark. Ambos buscavam reconciliar uma perda: a das utopias que encantaram sucessivas gerações ao longo do breve século XX (1914 a 1991, no entendimento de Eric Hobsbawm). A queda do Muro de Berlim, seguida pela dissolução da União Soviética, coincidiu com o adensamento conceitual da noção de pós-modernidade, gerando a consciência de que o ciclo impulsionado pelas vanguardas históricas havia se esgotado. O fim da arte moderna deixou órfã muita gente. Eu mesmo, que só peguei a fase derradeira do nosso modernismo periférico, quando já se tornara dogmático e prepotente, não deixo de sentir saudades. É difícil se despedir de uma ideia tão bonita, até para quem sabe que na prática o discurso quase nunca correspondeu aos fatos.

 

Quase no último suspiro da finada era moderna, o antropólogo Néstor García Canclini despontou com o volume Culturas híbridas (1990). Muita gente que já ouviu falar do livro, e mesmo alguns que o leram, ignora seu subtítulo: Estratégias para entrar e sair da modernidade. A frase refere-se à incumbência paradoxal, para nós latino-americanos, de nos tornarmos antes modernos para, em seguida, podermos superar o modernismo. Para García Canclini, existe uma disjunção na América Latina entre o modernismo cultural e a modernidade social, que fez com que o primeiro operasse historicamente como verniz e simulacro, disfarçando a ausência da segunda. A região que produziu exemplares tão arrojados de arquitetura, arte e literatura modernas é a mesma que se mostra cronicamente incapaz de dotar condições mínimas de cidadania às suas populações. Um exemplo emblemático dessa contradição é Brasília — em tese, uma utopia modernista em grande estilo; na prática, a única metrópole brasileira em que a favela antecedeu à cidade.

 

Meu novo livro, Modernidade em preto e branco (publicado em inglês pela Cambridge University Press, ainda sem previsão de lançamento no Brasil), gira em torno desse dilema. O que significa professar a modernidade num contexto marcado por relações e estruturas escravagistas e regido há quinhentos anos pelos mesmos poderes oligárquicos e espoliadores? Em toda a considerável historiografia do modernismo brasileiro, há pouca menção a fenômenos inescapáveis para quem viveu os anos 1920 e 1930 no Brasil: cinema e cultura midiática; música popular e carnaval; favelas e movimentos operários; cangaço, levantes e revoluções; a ditadura do Estado Novo. Essas manifestações da vida coletiva costumam ser empurradas para as margens, como se fossem de algum modo tangenciais às discussões do modernismo artístico. Meu livro foca, ao contrário, naquilo que podemos chamar de cultura majoritária e, por conseguinte, narra uma versão bem diferente da modernização cultural entre 1890 e 1945. A questão central é como o modernismo brasileiro está imbricado a um projeto de arcaísmo subjacente, que faz com que moderno e arcaico não se oponham entre nós, mas se conjuguem, se mesclem.

 

A historiografia brasileira de literatura e artes visuais costuma restringir seu entendimento do modernismo às elucubrações — algumas maravilhosas — de uma intelectualidade enredada em relações sociais abjetas e constrangida a suportar suas contradições. Nunca fomos modernos, como coletividade, por mais que uns e outras tenham abraçado uma gama de modernismos. Vários pensadores brasileiros já deram esse recado. Um dos meus prediletos é Florestan Fernandes, pela franqueza com que resumiu a questão: “Penso que os modernistas, de uma maneira geral, ficaram aquém do papel que lhes cabia. Eles tinham de ser necessariamente críticos da sociedade brasileira. E não o foram”.[nota 1] Quatro décadas depois desse juízo, ainda há quem faça ouvidos de mercador para fatos gritantes. A atração de agentes modernistas pelo poder e o prestígio gerou um legado de colaboracionismo, noves fora honrosas exceções, que turva a recepção do movimento como um todo. Mário de Andrade foi um dos poucos a fazer o mea culpa por se pôr a serviço dos “donos da vida”.[nota 2] Até hoje, sua confissão na palestra O movimento modernista, de 1942, esbarra na resistência de uma posteridade decidida a minimizar sua gravidade.[nota 3]

 

Para além da questão política, a crítica de Florestan Fernandes é notável ainda pela advertência de que precisamos “lutar contra a fantasia” se pretendemos enriquecer nossa cultura em comum. Com isso, o sociólogo alertava para a necessidade de sermos críticos e exigentes na “reconstrução do passado”.[nota 4] Talvez o maior obstáculo para o entendimento do modernismo brasileiro seja o anseio de defender cegamente a Semana de Arte Moderna e erigir 1922 em mito intocável, quase sagrado. Antonio Candido, que prefaciou o livro de Florestan, mostrou-se incomodado com o juízo implacável do colega. Compreende-se o embaraço dele. Juntamente com Lourival Gomes Machado, seu companheiro na revista Clima, Candido foi um dos principais responsáveis por emprestar legitimidade intelectual ao modernismo paulista no momento em que o movimento mais carecia dela — no decênio entre o fim do Estado Novo e o momento em que uma nova geração se lançou à ruptura com o passado artístico.[nota 5] É compreensível, e mesmo admirável, que os jovens do grupo Clima tenham se empenhado em resgatar Mário de Andrade, entre outros, do limbo em que se havia metido após sua autocrítica rigorosa. Menos meritório é não terem sabido acolher o repúdio ao modernismo em plena década de 1970, quando o sentido político de defender 1922 já era outro.

 

A bronca de Florestan Fernandes precisa ser compreendida no contexto do então recente cinquentenário da Semana de Arte Moderna. Em 1972, as autoridades militares emprestaram todo apoio à celebração do modernismo paulista. Para os generais, que se sentiam herdeiros do movimento tenentista, 1922 também era data sagrada. Não foi problema para a ditadura de Garrastazu Médici encampar o discurso que associava a Semana à Revolta dos 18 do Forte (discurso inaugurado, diga-se de passagem, por Oswald de Andrade em sua palestra de 1944, O caminho percorrido). O modernismo de 1922 tinha lá seu apelo para quem gostava de pensar o Brasil grande, sobretudo por sua ênfase no escrutínio da alma brasileira, preocupação não tão distante do Estudo de Problemas Brasileiros — a famigerada EPB, disciplina obrigatória em todo curso superior a partir de 1969. O Brasil brasileiro, decantado em 1925 pelo pernambucano Joaquim Inojosa, e depois cantado nos versos de Ary Barroso em pleno Estado Novo, era um ideal mais do que palatável para os ideólogos do Brasil, ame-o ou deixe-o.

 

Ao Brasil brasileiro, podemos contrapor o enunciado: “Nenhum Brasil existe”. O verso de Carlos Drummond de Andrade, de 1934, condensa com força poética as contrariedades encerradas na busca obsessiva por uma identidade nacional, missão que norteou boa parte do modernismo.[nota 6] O delírio da suposta descoberta do Brasil, reiterado desde que a chamada caravana modernista embarcou na perigosíssima aventura de fazer turismo em Minas Gerais em 1924, continua a ser iterado impensadamente em pleno século XXI. Quem determinou que seriam os paulistas os descobridores e os mineiros, baianos, pernambucanos, potiguares e paraenses, os descobertos? Quer dizer que antes do turista aprendiz trocar de trem em Juiz de Fora (MG) ou desembarcar no cais do Recife, tudo aquilo era terra incognita? Sem nem falar da mui leal e heroica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro que, pelo visto, era capital de um país que não sabia que não existia. Notícia bombástica para os conquistadores: antes dos modernistas descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto o desassossego.

 

Poucas quimeras têm lançado tantos náufragos ao mar quanto a noção do Brasil profundo. Não que não haja profundezas no Brasil. Ao contrário, elas existem aos montes: no Sertão e na selva, nos grotões e nas favelas, nos presídios e nos shoppings, na Esplanada dos Ministérios e nos escritórios envidraçados da Avenida Paulista, e principalmente nas gentes e costumes que povoam todos esses recantos. A dificuldade não está em localizar profundezas brasis adentro, mas antes em encerrar toda sua multiplicidade de expressões num conceito unificado de cultura brasileira. O problema do Brasil — aquele velho tópos retórico que pulula em nossas argumentações, desde as cidades universitárias até a mesa de botequim — é, quem diria, a fabulação que inventamos para nos convencermos a nós mesmos que somos unos e indivisíveis. Um dos grandes problemas do Brasil é, em poucas palavras, a ideia de Brasil.

 

De tanto nos esforçarmos para sermos brasileiros, muitas vezes atropelamos a fecundidade das nossas diferenças, regionais e pessoais. Entre nós, as chamadas lutas identitárias carregam a carga adicional de combater não somente o racismo e sexismo estruturais, como também a noção de pátria amada que rechaça quem não se veste de verde e amarelo, bate continência e diz amém. O modernismo paulista empunhou a bandeira do nacional para combater o suposto artificialismo da cultura importada. Ele tem portanto sua parcela de culpa pelo fato que, hoje, quem quer ser moderno é xingado de comunista. Precisamos escancarar o nenhum Brasil que existe. Mário de Andrade tinha razão. A ousadia de sermos nós mesmos é passo importante para a atualização cultural. A parte difícil dessa tarefa é entender quem somos, sem disfarces, sem fantasias. Olhar no espelho e encarar a cara de ressaca, em vez de vestir mais uma máscara… mesmo que esta seja de “índio” ou “negra” ou “modernista”.

 

 

NOTAS

 

[nota 1] Florestan Fernandes, A condição de sociólogo (São Paulo: Hucitec, 1978), p. 34.

 

[nota 2] Telê Porto Ancona Lopez, A arte tem que servir: Transcrição de uma entrevista de Mário de Andrade. In: Almanaque, 8 (1978), p. 35–39.

 

[nota 3] Ver Rafael Cardoso, O intelectual conformista: Arte, autonomia e política no modernismo brasileiro, em O que nos faz pensar, 26 (2017), p. 179–201.

 

[nota 4] Florestan Fernandes, A condição do sociólogo, p. 34.

 

[nota 5] Ana Paula Cavalcanti Simioni, Modernismo brasileiro: Entre a contestação e a consagração. In: Perspective, 2013-2, 21–23.

 

[nota 6] Simone Rossinetti Rufinoni, Mário e Drummond: Nacionalismo, alteridade, arte. In: Estudos Avançados, 28 (2014), 247–266.

 

 

 

 

Fonte: Suplemento Pernambuco.

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