Por Julio de Paula e Nabor Jr.

Em 1982, a gravadora Eldorado reunia em seus estúdios três das majestades negras da música popular brasileira: Tia Doca da Portela (pastora da Velha Guarda), Geraldo Filme (o primeiro-nome do samba paulista), e a Rainha Quelé, Clementina de Jesus. O projeto de Aluízio Falcão com direção musical de Marcus Vinícius e percussão de Papete viria a se tornar um dos mais antológicos álbuns da música popular: O canto dos escravos. Tratava-se da primeira gravação de 12 cantos de trabalho (ou vissungos) recolhidos na década de 1930 pelo folclorista mineiro Aires da Mata Machado Filho na região de Diamantina, no Norte de Minas Gerais.

Preciosidade da história fonográfica tupiniquim e um dos mais reveladores discos produzidos no Brasil no século 20, o álbum O Canto dos Escravos, lançado em 1982 dentro da série Memória Eldorado, da Gravadora Eldorado, ainda ocupa o privilegiado posto de mais importante documentação sonora a cerca da cultura oral africana praticada pelos negros escravos em terras brasileiras.

Impossível escutá-lo e permanecer imune a sua rica ancestralidade sonora e rítmica, bem como as inevitáveis lembranças do terrível período da escravidão.

O registro documental da existência – e resistência – cultural da tradição bantófone no Brasil ao que o trabalho se propõe, por si só já seria suficiente para torná-lo singular (o álbum foi o primeiro registro sonoro da “música” do tempo da escravidão no país), contudo, sabedores do arqueológico material que tinham em mãos, o pernambucano Aluísio Falcão, coordenador artístico do projeto, e Marcus Vinícius de Andrade, produtor e diretor musical do disco, transformaram o que seria apenas mais uma documentação histórica em um dos mais belos trabalhos artísticos dedicados a preservação das tradições culturais do negro escravizado no Brasil.

Dividido em 14 cantos ancestrais dos negros benguelas de São João da Chapada e Quartel do Indaiá, povoados de Diamantina, município de Minas Gerais, e interpretados por três dos mais importantes defensores da preservação das tradições ancestrais afrobrasileiras na música nacional: Geraldo Filme (1928 – 1995), Clementina de Jesus (1901 – 1987) e Tia Doca da Portela (1932 – 2009), o projeto reúne as qualidades técnicas essenciais para um trabalho musical que se propõe a transpor com eficiência a barreira da superficialidade e do “mero” entretenimento: originalidade, sensibilidade, intensidade e, obviamente, boa música, bons músicos e simplicidade nos arranjos.

 

Clementina de Jesus, Tia Doca & Geraldo Filme – O Canto Dos Escravos (1982) – Álbum Completo:

https://www.youtube.com/watch?v=Dq-CdQfW3kU

Dos escritos do pesquisador

Em 1928, indo em gôzo de férias a São João da Chapada, município de Diamantina, chamaram-me a atenção umas cantigas em língua africana ouvidas outrora nos serviços de mineração. Fui ter com um dos conhecedores, o meu bom amigo João Tameirão, que, com solicitude, satisfez à minha curiosidade de aprender as cantigas.

Nas curtas estadas naquele aprazível e tranqüilo arraial, nunca deixei de observar alguma coisa sobre os tais cantos de trabalho, cuja importância foi crescendo em meu conceito, à medida que fui adquirindo conhecimentos novos. (Aires da Mata Machado Filho em O negro e o garimpo em Minas Gerais)

Das Veredas

Em 2002, época em que a Eldorado lançava e relançava títulos de seu célebre catálogo, intrigava a ideia do LP nunca ter sido remasterizado. Recuperamos o vinil e editamos esta audição que reuniu lado a lado os 12 cantos de 1982, o texto do folclorista que apresentava as cantigas publicadas em 1938, além de duas outras fontes determinantes: vissungos gravados em campo por Luís Heitor Corrêa de Azevedo em 1944, que revelam a prática do dialeto. Além das gravações de Paulo Dias e Marcelo Manzatti, que em 1997 atestavam a sobrevivência da tradição.

Hoje, O canto dos escravos está editado em CD e integra a discografia básica da música brasileira.

Fonte: Cultura Brasil e O Menelick 2º Ato.

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