Por Ricardo Verdum
A demarcação das terras indígenas não é apenas uma tarefa administrativa do Estado, é um ato fundamentalmente político e de cidadanização. A forma de garantir aos povos e comunidades que nelas habitam a condição básica à sua continuidade como grupo social e ao seu desenvolvimento presente e futuro. Mas para efetivar esta condição e este direito, é necessária a projeção de instituições que realizem este objetivo e garantam a sustentação e a proteção destes espaços territoriais. Muitos, instituídos formalmente ao cabo de processos com duração de vários anos, entre idas e vindas, paralisações, assédios e tensões.
Mas se para a população indígena, viver em um território é um dado natural de uma história social e cultural de várias gerações, a criação e a manutenção das fronteiras de uma Terra Indígena – como unidade política, jurídica e administrativa – é outra coisa. Ela está sujeita à dinâmica da correlação de forças social e política no âmbito do Estado e da sociedade brasileira; em um país de economia dependente e subdesenvolvida situado na periferia do sistema capitalista, pressionado pela ganância extrativista empresarial agromineral interna e globalista.
Saliento que existe evidentes interesses práticos no que aqui desenvolvemos: denunciar problemas e limitações, e anunciar linhas gerais de superação.
A situação da demarcação de Terras Indígenas
Atualmente são em número de 728 as áreas territoriais reconhecidas como habitadas por grupos e povos indígenas, situadas em diferentes fases do processo de reconhecimento formal pelo Estado nacional. Dessas, 487 estão homologadas como Terras Indígenas por decreto presidencial, 74 contam com portaria declaratória assinada pelo Ministro da Justiça, 43 estão identificadas e 124 estão em processo de identificação. Cerca de 59% das áreas estão localizadas nos estados que compõem a Amazônia Legal e o estado do Amazonas é onde elas estão em maior número, 164, totalizando 45,800 milhões de hectares.
As terras indígenas no governo atual
Nos últimos 45 meses, não foi identificado, demarcado ou homologado um único centímetro de terra indígena.
A análise das práticas institucionais revela haver, da parte do governo federal e da Fundação Nacional do Índio (Funai), uma clara intenção de expor os grupos indígenas em isolamento na Amazônia ao contato com os invasores das terras onde vivem. Concretamente, fazer com que desapareçam; possibilitar e legitimar a abertura definitiva das áreas territoriais hoje de uso restrito aos isolados, e sua ocupação por usurpadores, grileiros, fazendeiros, madeireiros e outros.
Mas a estratégia de fazer desaparecer não está centrada unicamente na população indígena em isolamento. Em 22/04/2020, a Funai publicou no DOU a Instrução Normativa (IN) nº 9/2020, onde estabeleceu novas regras para a emissão da Declaração de Reconhecimento de Limites em Relação a Imóveis Privados: que a Funai, para efeito de emissão de Declarações solicitadas por ocupantes não indígenas de terras (grileiros, posseiros, fazendeiros), só reconhece como Terras Indígenas aquelas que estão homologas mediante decreto presidencial. Ainda, que o Sistema de Gestão Fundiária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, responsável pelo cadastro oficial contendo dados sobre os limites dos imóveis rurais, deveria seguir os conceitos e regras disciplinados nesta IN. A medida deixou as populações indígenas que vivem nas áreas não homologadas completamente a descoberto, tendo de resistir e enfrentar, por conta própria, o avanço das frentes agropecuárias e extrativistas sobre os territórios dos quais tiram o seu sustento.
Mais recente, em 29/12/2021, a direção da Funai determinou que as Coordenações Regionais, os Serviços de Gestão Ambiental e Territorial e as Coordenações Técnicas Locais do órgão não deveriam incluir nos planos de trabalho e orçamento para 2022 a execução de atividades de proteção territorial em Terras Indígenas ainda não homologadas. Somente no estado do Amazonas, 40 terras indígenas ficaram desprotegidas de ações de proteção territorial.
Com estas atitudes, o atual governo deixou à própria sorte uma parcela substantiva da população indígenas e seus territórios tradicionais. Especialmente a parcela que está na situação de maior risco e vulnerabilidade. O que tem sucedido também com populações em Terras Indígenas homologadas, como é o caso da Terra Indígena Yanomami, invadida por mais de 20 mil garimpeiros e milicianos armadas, que contam com a omissão e o apoio explícito do governo federal.
Não demarcar, não homologar e não retirar invasores das terras indígenas já homologadas são três diferentes maneiras do órgão indigenista agir para que os povos e comunidades indígenas desapareçam fisicamente ou desapareçam enquanto coletividade organizada, autônoma e territorializada.
A questão política premente neste cenário é, portanto, como criar uma ordem política que viabilize retomar o processo demarcatório, aliado com a proteção e a sustentabilidade das coletividades indígenas em seus territórios, sem agravar o atual quadro de violência contra elas.
Referências:
Verdum, Ricardo. O Acordo Comercial Mercosul-União Europeia: riscos e desafios para os povos indígenas. Copenhague, Dinamarca: IWGIA, 2021.
Verdum, Ricardo. A Resolução n.º 4/2021 e os critérios de indianidade: a tentativa de restrição à autoidentificação indígena e seus efeitos. In: Alarcon, Daniela F.; Pontes, Ana Lucia de M.; Cruz, Felipe Sotto M.; Santos, Ricardo Ventura (orgs.). A gente precisa lutar de todas as formas: povos indígenas e o enfrentamento da Covid-19 no Brasil. São Paulo, SP: Hucitec Editora; Rio de Janeiro, RJ: ABRASCO, pp. 167-213, 2022.
Verdum, Ricardo. O novo indigenismo é insustentável e expõe a população indígena a violações. In: Relatório Violências Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2021. Brasília, DF: Conselho Indigenista Missionário, pp. 34-47, 2022.
Verdum, Ricardo. O extrativismo mineral do ouro e os direitos indígenas ameaçados. Governo brasileiro impulsiona a atividade minerária sem garantir os direitos dos povos indígenas. Copenhague, Dinamarca: IWGIA, 2022.
Sobre o autor:
Ricardo Verdum é Cientista Social, doutor em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB), pesquisador acadêmico independente e coordenador da Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia (CAI/ABA).
Fonte: Jornal da Ciência.