Por Michael França e Fillipi Nascimento

O movimento Black Lives Matter (BLM) ganhou impulso e visibilidade em 2020, após o assassinato de George Floyd. O vídeo que mostrava o policial Derek Chauvin, um homem branco, ajoelhado sobre o pescoço de Floyd, um homem negro, por mais de nove minutos, enquanto ele repetidamente dizia que não conseguia respirar, repercutiu nas redes sociais, gerou revolta e provocou uma onda de protestos sem precedentes em todo o mundo. O caso de Floyd reavivou uma série de debates sobre questões críticas relacionadas à raça e ao racismo, e com isso o BLM tornou-se um símbolo global da luta contra a opressão racial.

Mas, na mesma medida em que o BLM recebia apoio popular, recebia também críticas. Houve quem reconhecesse a frase que intitulava o movimento – “vidas negras importam”- como “divisora e inerentemente racista”.

Questionamentos do tipo “por que somente as vidas negras importam?”, ou “vidas brancas não importam?”, eram levantados pelos críticos em uma clara tentativa de neutralizar o avanço das discussões conduzidas pelo BLM.

All Lives Matter (ou “todas as vidas importam”) surge da articulação dessas vozes dissonantes, com o objetivo de fazer valer o argumento de que todas as vidas importam porque todas as vidas são iguais, uma vez que todos são seres humanos.

Por mais inclusiva que possa parecer, essa narrativa, pautada em um princípio de igualdade baseado em uma condição biológica (a condição de ser humano), se esvazia por completo ao ignorar discriminações que afetam desproporcionalmente aos indivíduos negros.

Em última instância, são discursos como esse que acabam silenciando as vozes que clamam por justiça e deslegitimando as experiências da população negra.

A necessidade de uma interpretação crítica desses discursos é algo que se coloca tal qual a necessidade de se engajar nas discussões sobre raça e racismo a partir de evidências empíricas.

Evidências da discriminação

Economistas têm desempenhado um papel fundamental na produção de evidências empíricas sobre discriminação racial, com destaque para os estudos de auditoria e as análises do racismo implícito e explícito. O professor de psicologia social Rupert Brown, ao examinar os níveis de discriminação explícita nos Estados Unidos, percebeu uma mudança gradativa na percepção dos negros pelos brancos americanos ao longo do tempo. Nos anos 1930, mais de 80% dos brancos consideravam os negros supersticiosos, mas essa aceitação dos estereótipos negativos caiu para apenas 3% na década de 1990.

Katherine Spencer, Amanda Charbonneau e Jack Glaser investigaram o impacto dos preconceitos implícitos nas decisões policiais e constataram que os oficiais tendiam a disparar mais rapidamente contra indivíduos negros e de outras minorias étnicas em comparação com os brancos, mesmo quando estes últimos estavam armados. Os autores apontaram esse viés como um grave problema na aplicação da lei, que resulta em disparidades raciais tanto na violência policial quanto no sistema de justiça criminal. Resultados semelhantes foram observados no Brasil pelos pesquisadores da Universidade de Sergipe Marcos Eugênio Oliveira Lima, Camila Lima de Araújo e Emília Silva Poderoso, que empregaram uma metodologia distinta.

Em um estudo de auditoria conduzido pelo sociólogo Felipe Dias, currículos fictícios foram enviados para vagas de emprego nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Os currículos variavam quanto à cor da pele, classe social e gênero dos candidatos fictícios. O estudo revelou que os candidatos brancos de classe alta eram mais propensos a serem convidados para entrevistas, enquanto os negros de classe baixa tinham as menores chances. As mulheres, particularmente as negras de classe baixa, eram geralmente prejudicadas em relação aos homens.

Em linhas gerais, esses estudos, entre muitos outros, mostram que indivíduos de distintos grupos raciais não são percebidos e tratados da mesma forma. Essas evidências do racismo reiteram a necessidade de debatê-lo de forma aberta e consciente. Esse debate, contudo, não pode ser levado adiante sem o reconhecimento do caráter social da raça, pois esse é o primeiro passo para desmistificar e desconstruir preconceitos e estereótipos que estão na base do racismo. O debate sobre o racismo pressupõe, portanto, uma discussão crítica sobre como a raça é construída socialmente e como isso se reflete nas instituições e nas relações sociais. Esse debate é fundamental para promover a conscientização e o entendimento sobre a complexidade do racismo e suas diversas manifestações.

O que é raça?

raça é uma construção social. Isso implica dizer que ela é uma categoria formada e sustentada por processos sociais, em vez de variações biológicas objetivas. Quando reconhecemos a raça como uma construção social, aceitamos que as categorias raciais são formadas por relações de poder e cenários sociais particulares. Essa perspectiva nos habilita a conduzir análises mais aprofundadas sobre as desigualdades raciais, levando em consideração também a influência de elementos como gênero e classe social. Ao renunciarmos a noção biológica de raça, somos capacitados a desafiar as lógicas que sustentam as diferentes formas de discriminação racial baseadas na crença de superioridade ou inferioridade de grupos raciais específicos.

É a partir do entendimento de que a raça é uma categoria socialmente construída, não definida pela biologia, que podemos passar a dedicar esforços à eliminação das desigualdades raciais. Esta abordagem nos permite reconhecer e desafiar políticas e práticas discriminatórias com o objetivo de promover a diversidade e a inclusão, por meio de um diálogo aberto sobre raça e racismo. Declarações como “somos todos humanos”, embora sustentem um vocabulário popular de inclusão e reconhecimento da diversidade, minimizam ou ignoram as realidades da discriminação racial, pois, inadvertidamente, desconsideram injustiças sociais, políticas e econômicas enfrentadas pelas pessoas de diferentes origens raciais, a despeito do fato dessas serem todas humanas.

Essas e outras discussões são abordadas de forma mais aprofundada no livro “Números da Discriminação Racial: desenvolvimento humano, equidade e políticas públicas”, lançado pelo Insper no fim de outubro de 2023. Com contribuições de pesquisadores do Núcleo de Estudos Raciais do Insper e de renomados especialistas, o livro reúne dados históricos sobre a evolução das disparidades raciais no Brasil e discute as complexidades da questão racial, revelando aspectos frequentemente negligenciados ou mal compreendidos pelo público em geral. Se você é estudante de economia, profissional do setor público, empresário ou simplesmente alguém interessado em expandir sua visão de mundo, esta obra é um convite à reflexão. Em tempos de debates acalorados e polarização, “Números da Discriminação Racial” é um lembrete oportuno da importância do diálogo informado por evidências na busca por justiça e equidade.

Fonte: The Conversation.

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