Nosso último estudo analisa como o declínio da hegemonia do Norte Global mudou o cenário geopolítico e abriu novas possibilidades para o Sul Global.

A pesquisa realizada para a produção deste documento foi conduzida de forma coletiva durante mais de um ano e recebeu contribuições de diversos acadêmicos e ativistas socialistas. Foram compilados dados e gráficos fornecidos pela Sul Global Insights (GSI), com edição e coordenação de Gisela Cernadas, Mikaela Nhondo Erskog, Tica Moreno e Deborah Veneziale. Grande parte dos dados e gráficos da Parte IV se baseiam em pesquisas publicadas pelo economista John Ross.

Introdução

Faz apenas 30 anos que ideólogos burgueses declararam o “fim da história” em pantomimas de satisfação de desejos, por sentirem a inviolabilidade do imperialismo dos Estados Unidos.1

Vijay Prashad, Struggle Makes Us Human: Learning from Movements for Socialism (Nova York: Haymarket Books, 2022); Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Dez teses sobre marxismo e descolonização, dossiê no. 56, 20 de setembro de 2022, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-dez-teses-sobre-marxismo-e-descolonizacao/.NOTA DE RODAPÉ

Mas para as lutas e os movimentos populares que sentiam a bota do imperialismo no pescoço, esse fim não estava à vista.

Diante da violência da repressão, como a ocorrida no Massacre de Eldorado do Carajás em 1996 no Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra liderou a reivindicação de terras para a reforma agrária popular por meio da ocupação e da produção, desafiando gigantes do agronegócio, como a multinacional estadunidense Monsanto.2

Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Reforma agrária popular e a luta pela terra no Brasil, dossiê no. 27, 6 de abril de 2020, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-27-terra/.NOTA DE RODAPÉ

Hugo Chávez, um “soldado que abalou o continente”, venceu no voto popular em 1999, em uma forte guinada à esquerda que foi depois seguida por outros lugares da América Latina. Essa guinada incluiu uma onda de mobilizações em massa de milhões de pessoas trabalhadoras, camponesas, indígenas, mulheres e estudantes, que, em 2005, derrotaram a Área de Livre Comércio das Américas proposta pelos EUA, em um enfrentamento direto a quase 200 anos de Doutrina Monroe dos EUA.3

Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Um legado estratégico: o pensamento revolucionário do comandante Chávez 10 anos após sua partida, dossiê no. 61, 28 de fevereiro de 2023, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossierchavez-pensamento-estrategico/; Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Um mapa do presente da América Latina: uma entrevista com Héctor Béjar, dossiê no. 49, 7 de fevereiro de 2022, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-49-bejar-america-latin/; Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, O Ministério das Colônias dos EUA e sua cúpula, alerta vermelho nº 14, 25 de maio de 2022, https://thetricontinental.org/pt-pt/alerta-vermelho-14-cupula-americas/.NOTA DE RODAPÉ

Em 2002, as mulheres nigerianas se reuniram em frente aos portões da Shell e da Chevron para protestar contra a destruição e a exploração ambiental no Delta do Níger. Os haitianos rejeitaram séculos de abuso em manifestações em massa após a destituição de Jean-Bertrand Aristide pelos EUA e a ocupação estadunidense em 2004. Milhões de nepaleses e nepalesas comemoraram a derrubada da monarquia por meio da resistência armada liderada por comunistas em 2006. Quando Mohamed Bouazizi ateou fogo em si mesmo em 2010, o povo tunisiano se rebelou contra o sistema neoliberal que levou o vendedor de frutas a tomar uma medida tão drástica.

Nos anos seguintes, ocorreram transformações, por vezes pequenas e imperceptíveis, por outras, voláteis e explosivas. Essas mudanças envolveram tanto movimentos populares quanto atores estatais, em alguns casos extremamente poderosos. Os EUA foram confrontados por uma potência econômica em ascensão, a China, por economias em crescimento no Sul Global (que ultrapassaram o PIB do Norte Global em termos de PPC em 2007), por anos de negligência no investimento de capital doméstico, pela financeirização da economia e a perda da superioridade na indústria.

A ascensão do Tea Party em 2009 sinalizou uma fratura na política interna dos EUA. No âmbito internacional, o país não conseguiu promover uma ruptura branda do regime na China nem uma desnuclearização ou mudança de regime na Rússia. Após uma redução temporária dos gastos militares com o fim da desastrosa guerra contra o Iraque (2003-2011), o uso efetivo do poder militar ou a ameaça de seu uso passou a ser um pilar central da resposta dos EUA a essas transformações.

Historicamente, a perda da hegemonia acontece em três estágios: produtivo, financeiro e militar.4

Immanuel Wallerstein, “The Three Instances of Hegemony in the History of the Capitalist World-Economy”, ed. Lenski, Current Issues and Research in Macrosociology, 1 de janeiro de 1984, 100-108, https://doi.org/10.1163/9789004477995_008.NOTA DE RODAPÉ

Os Estados Unidos perderam a hegemonia na produção, embora ainda tenham algumas áreas remanescentes de hegemonia tecnológica, inclusive naquelas relacionadas às forças armadas. O país está vendo sua hegemonia financeira ser desafiada, mesmo que isso ainda esteja nos estágios iniciais e se relacione ao status do dólar estadunidense. Ainda que os aspectos econômicos e políticos de seu declínio possam estar se acelerando, os EUA ainda detêm poder militar, o que cria para o país a tentação de tentar superar as consequências de seu declínio econômico por meios militares ou afins.

Os EUA definiram a China como concorrente estratégica. Seu programa mínimo é a contenção e o enfraquecimento econômico do país asiático em medida suficiente para garantir a hegemonia econômica perpétua dos EUA no futuro.

De seu próprio ponto de vista, o capitalismo dos EUA é racional em suas tentativas de limitar a ascensão da China. Sem isso, haveria uma corrosão de sua vantagem relativa no controle dos níveis mais altos das forças produtivas e nos privilégios monopolistas resultantes desse controle. Há um alinhamento quase completo entre os atores estatais dos EUA para continuar conduzindo uma dissociação da China (apesar da quase impossibilidade de remodernizar totalmente as forças produtivas dentro dos EUA) e avançar nos preparativos militares contra a China.

O movimento de tropas russas para a Ucrânia em fevereiro de 2022 – resultado das violações contínuas das garantias dos EUA sobre a não expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e da guerra civil permanente entre Kiev e Donbas – marcou, para os EUA, uma nova fase explícita de alinhamento militar mundial. Em uma série de movimentos rápidos, os EUA subordinaram abertamente todos os países do Norte Global e, nesse processo, subordinaram ainda mais o aparato militar desses Estados. Estabeleceram-se como potência militar hegemônica óbvia daquilo que recebe o eufemismo de Otan+, que inclui todos os membros do antigo Bloco do Leste, com exceção de três. Aqueles que participaram como membros ou observadores da cúpula da Otan em 2023 em Vilnius, na Lituânia – incluindo Austrália, Nova Zelândia, Japão e República da Coreia5

NT: O documento adota os nomes oficiais da República Popular Democrática da Coreia (Coreia do Norte) e República da Coreia (Coreia do Sul).NOTA DE RODAPÉ

–, são membros de facto da Otan+. Apenas Israel (dispensado de comparecer por conveniência política) e alguns países menores do Norte Global não compareceram.

A partir de outubro de 2023, Israel iniciou uma campanha de expulsão, limpeza étnica, punição coletiva e genocídio da população palestina com o apoio total e descarado do governo dos Estados Unidos. Os acontecimentos na Ucrânia, seguidos pelas recentes escaladas em Gaza, são marcos significativos que refletem uma mudança qualitativa no sistema imperialista. Os EUA já concluíram sua subordinação econômica, política e militar de todos os outros países imperialistas. Isso consolidou um bloco imperialista integrado e militarmente focado. Seu objetivo é manter suas garras sobre o Sul Global como um todo e as atenções se voltaram para o domínio da Eurásia, última região do mundo que escapou de seu controle.

Não é exagero dizer que o Norte Global declarou um estado de guerra e hostilidade aberta contra qualquer parte do Sul Global que não esteja de acordo com suas políticas. Isso pode ser visto na declaração conjunta sobre a Cooperação UE-Otan publicada no dia 9 de janeiro de 2023:

Mobilizaremos ainda mais o conjunto de instrumentos a nossa disposição, sejam eles políticos, econômicos ou militares, para alcançar nossos objetivos comuns em benefício do nosso bilhão de cidadãos.6

Jens Stoltenberg, Ursula von der Leyen e Charles Michel, “Joint Declaration on EU-NATO Cooperation”, Organização do Tratado do Atlântico Norte, 10 de janeiro de 2023, https://www.nato.int/cps/en/natohq/official_texts_210549.htm.NOTA DE RODAPÉ

É certo que o povo palestino em Gaza está sentindo a barbárie palpável da Otan+ e o “consenso de massa” forçado que o Norte Global é capaz de promover. Como afirmou recentemente a liderança da luta pela libertação palestina Leila Khaled:

Sabemos que eles falam em terrorismo, mas eles são os heróis do terrorismo. A força imperialista ao redor do mundo, no Iraque, na Síria, em diferentes países… está se preparando para atacar a China. Tudo o que dizem sobre terrorismo acaba sendo sobre eles mesmos. As pessoas têm o direito de resistir a isso com todos os meios, incluindo com a luta armada. Isso está na Carta das Nações Unidas. Então eles estão violando os direitos de resistência das pessoas, porque é direito delas recuperar sua liberdade. E essa é — como sempre digo — uma lei fundamental: onde há repressão, há resistência. As pessoas não querem viver sob ocupação e repressão. A história nos ensinou que, quando um povo resiste, ele consegue manter sua dignidade e sua terra.7

Leila Khaled: “Onde há repressão, há resistência”, Capire, 27 de outubro de 2023, https://capiremov.org/entrevista/leila-khaled-onde-ha-repressao-ha-resistencia/.NOTA DE RODAPÉ

***

O imperialismo começou sua transformação para um novo estágio: o hiperimperialismo.8

Vladimir I. Lênin, Imperialism, the Highest Stage of Capitalism: A Popular Outline (Nova York: International Publishers, 1939); Walter Rodney, How Europe Underdeveloped Africa (Londres: Bogle-L’Ouverture Publications, 1972); Kwame Nkrumah, Neo-Colonialism: The Last Stage of Imperialism, reimpresso (Londres: Panaf, 2004).NOTA DE RODAPÉ

Trata-se de um imperialismo conduzido de forma exagerada e dinâmica, embora também sujeita às restrições que o império em declínio impôs a si mesmo. A qualidade espasmódica de seu esforço é sentida pelas milhões de pessoas congolesas, palestinas, somalis, sírias e iemenitas que vivem sob o militarismo dos EUA e têm a reação instintiva de proteger o corpo diante de sons repentinos.

No entanto, essa não é a marcha vigorosa que a Guerra Fria iniciou pelo mundo, travada em batalhas por procuração seguidas de um imperialismo econômico por meio do Banco Mundial e de outras instituições de desenvolvimento. Trata-se do imperialismo de um bilionário que está se afogando e tem a firme convicção de que deveria estar de volta ao seu iate. Um imperialismo que flexiona os músculos do poder que ainda estão fortes – os militares. Entretanto, na ausência de poder produtivo e sabendo que o poder financeiro está em um ponto de inflexão, o conjunto completo de tecnologias imperiais de controle que os EUA já tiveram não está mais à disposição. Desse modo, o país canaliza seus esforços por meio dos mecanismos de que mais dispõe: cultura (controle da verdade) e guerra.

As táticas do hiperimperialismo são moldadas, em parte, pela modernização da guerra híbrida, que inclui guerra jurídica (lawfare), hipersanções, tomada de reservas e ativos nacionais e outras formas de guerra não militar. Novas ferramentas tecnológicas de vigilância e comunicação direcionada que caracterizam a era digital são utilizadas para exercer o controle imperialista na batalha de ideias, incluindo a implementação de métodos mais perversos e secretos contra a verdade, como a prisão política do editor da WikiLeaks, Julian Assange, que expôs inúmeros crimes cometidos contra o Sul Global.9

Julian Assange, When Google Met WikiLeaks (Nova York: OR Books, 2014).NOTA DE RODAPÉ

O Norte Global é um bloco militar, político e econômico integrado composto por 49 países. Entre eles estão os EUA, o Reino Unido, o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia, Israel, o Japão e países secundários da Europa Ocidental e Oriental. Na arena militar, a Turquia (como membro da Otan), as Filipinas e a República da Coreia (estas duas, efetivamente colônias militarizadas dos EUA) estão incluídas em nossa definição de “bloco militar liderado pelos EUA”, embora façam parte do Sul Global.

Nos últimos vinte anos, o Norte Global passou por um significativo declínio econômico relativo, juntamente com um declínio político, social e moral. Suas falsas reivindicações “morais” de direitos civis e “liberdade de imprensa” já se tornaram um completo escárnio, pois buscam tornar ilegal o apoio público (inclusive pela internet) aos direitos da população palestina. Esse apoio total à humilhação e à destruição dos povos de pele mais escura do mundo é reminiscência de séculos passados, expondo o que pode ser descrito como “fragilidade branca” coletiva.

Os países do Sul Global compreendem ex-colônias e semicolônias, alguns Estados independentes fora da Europa e projetos socialistas atuais e antigos. Na maior parte do Sul Global, as lutas por libertação nacional, independência, desenvolvimento e soberania econômica e política total ainda precisam ser concluídas.

Apesar das limitações da terminologia, falaremos em “Norte Global” e, ocasionalmente, em “Ocidente” (expressão vazia de uso frequente) de forma intercambiável com o termo mais preciso “campo imperialista liderado pelos EUA”. Analisaremos o Norte Global em quatro “anéis”. O restante do mundo é hoje conhecido como “Sul Global”, sendo que grande parte era chamada, no passado, de “Terceiro Mundo”. Analisaremos o Sul Global em seis “grupos”, determinados a partir da medida relativa com que um país é alvo de mudança de regime e pelo papel que seu governo desempenha na promoção pública de posições internacionais e anti-imperialistas (conforme Figura 1). O Norte Global está envolvido em níveis muito mais altos de conflito generalizado com o restante do mundo, o Sul Global.

 

Acesse o estudo:
Fonte: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
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