Por Agostinho Vieira

Brasileiros dizem estar preocupados com a desigualdade, enquanto parcela de 1% mais rica da população segue com quase metade do patrimônio nacional.

“A Constituição certamente não é perfeita”, dizia o deputado Ulysses Guimarães, em seu discurso de promulgação da Carta Magna de 1988. E seguia: “Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da pátria”. No próximo dia 5 de outubro de 2023, essa Constituição histórica e contemporânea estará completando 35 anos. Entre os aniversariantes do dia se destaca o Artigo 153, que trata dos impostos da União, em especial o parágrafo VII, que diz: “compete à União instituir impostos sobre grandes fortunas, nos termos de lei complementar”. Desde então, ao longo dessas 35 primaveras, o IGF, como também é conhecido, passou a ser considerado uma espécie de cabeça de bacalhau da política nacional, todos sabem que existe, mas nunca ninguém viu.

Na prática, ao pé da letra, não dá para dizer que a Constituição está sendo descumprida ou afrontada, mas, sem dúvida, a vontade do povo não está sendo levada em conta. Uma pesquisa divulgada esta semana pelo Instituto Ipsos mostrou que os brasileiros estão mais preocupados com a desigualdade social do que com a inflação. A sondagem, feita simultaneamente em 29 países entre fevereiro e março, revelou que 41% dos brasileiros consideram a desigualdade e a pobreza como os temas mais problemáticos do país, contra 31% da média mundial. A pesquisa tem margem de erro de 3,5 pontos percentuais para mais ou para menos. Já a inflação lidera o ranking global de problemas, o que vem se repetindo nos últimos 12 meses, mas não no Brasil.

Um outro estudo, feito pelo Instituto DataSenado, em fevereiro, foi ainda mais específico. Ele revelou que 62% dos brasileiros concordam com a criação de um imposto para os mais ricos do país. Outros 34% desaprovam o IGF e cerca de 5% dos entrevistados não sabiam ou não responderam. Uma das dúvidas sobre esse novo imposto está exatamente na definição do que seria uma “grande fortuna”. O mesmo levantamento do DataSenado tentou dirimir essa questão e perguntou: “Na sua opinião, a partir de qual valor seria estimada uma grande fortuna?”. A divergência foi grande. Cerca de 13% dos entrevistados apontaram valores inferiores a R$ 1 milhão. Já 31% afirmaram que deveria ser considerado um patrimônio entre R$ 1 milhão e R$ 10 milhões; 24% sugerem um valor maior, acima de R$ 10 milhões, e outros 32% disseram não saber ou preferiram não responder.

O Imposto sobre Grandes Fortunas tem sido um tema recorrente nas campanhas eleitorais dos últimos 30 anos, e objeto de dezenas de projetos de lei que tramitam no Congresso, nas Comissões de Assuntos Econômicos (CAE) ou nas Comissões de Constituição e Justiça. A expressão “nos termos de lei complementar” pressupõe debates e acordos políticos. Os debates são muitos, os acordos muito raros. No último pleito, o IGF voltou a se transformar em promessa de campanha do presidente Lula. Recentemente, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que entre 400 e 500 empresas com “superlucros” vêm usando “expedientes ilegítimos para não pagar impostos”. E que elas passariam a ser cobradas. Segundo o próprio ministro, isso nada tem a ver com a criação de novos tributos ou com aumento de alíquotas, trata-se apenas de corrigir injustiças e cobrar de quem não paga. Talvez na reforma tributária, prometida para o meio de ano, a gente veja alguma novidade sobre o IGF.

Enquanto isso, a desigualdade no Brasil segue o seu curso histórico, com origens que remontam ao tempo da escravidão. Ano após ano o país aparece na lista das dez nações mais desiguais do planeta. Dados do World Inequality Lab (Laboratório das Desigualdades Mundiais), que integra a Escola de Economia de Paris e é codirigido pelo economista Thomas Piketty, autor do bestseller “O Capital no Século 21”, mostram que os 10% mais ricos no Brasil ganham quase 59% da renda nacional total. Além disso, a metade mais pobre possui menos de 1% da riqueza do país. Já a parcela de 1% mais rica fica com quase metade do patrimônio total. Com viés de alta. O índice passou de 48,5%, em 2019, para 48,9%, em 2021.

Em entrevista ao site da Deutsche Welle, Rafael Georges, coordenador de campanhas da ONG Oxfam Brasil, disse que “se a tendência das desigualdades registrada nos últimos 20 anos se mantiver no Brasil, a igualdade salarial entre homens e mulheres só será alcançada em 2047. Os negros, por sua vez, levarão 70 anos para ter os mesmos salários que os brancos”.

Nunca é demais lembrar que o Brasil é um dos 195 signatários da Agenda 2030, os chamados Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) que, no seu item 10 prevê exatamente a Redução das Desigualdades. Entre os compromissos a serem cumpridos até 2030 estão “o crescimento da renda dos 40% mais pobres a uma taxa maior que a média nacional” e a “adoção de políticas, especialmente fiscal, salarial e de proteção social, para alcançar progressivamente uma maior igualdade”. Ou seja, a intenção de reduzir a desigualdade no Brasil está nas pesquisas de opinião, está na Constituição de 88, está nos projetos de lei do Congresso, está na Agenda 2030. Nada mais do que isso: só uma intenção.

 

Fonte: Colabora.

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