Por João Cavalcante e Renato Contente

Judith Butler é um dos nomes incontornáveis no debate intelectual contemporâneo por fazer a filosofia conversar abertamente com a política e com os movimentos sociais. Ao longo de sua trajetória, a filósofa estadunidense vem propondo questionamentos ressonantes, tanto no debate sobre feminismo, gênero e teoria queer, quanto em temas como ética, luto e violência, discutidos em livros como Quadros de guerra e Vida precária. O mais recente deles, A força da não-violência: O vínculo ético-político, publicado em 2020, chega ao país neste semestre pela editora Boitempo, com tradução de Heci Regina Candiani. Nele, a autora debate a necessidade de uma ética da não-violência ativa, um modo de promover redes de solidariedade abrangentes e de interromper a violência institucional. Para ela, a não-violência parte do reconhecimento da interdependência e da vulnerabilidade comuns aos seres humanos. Conversamos com Butler sobre a ressonância política da pandemia, o luto generalizado, bem como sobre os efeitos do negacionismo científico e da precariedade global que a covid-19 tornou evidente.


No seu livro mais recente, você discute acerca da não violência e reivindica uma igualdade radical entre as pessoas, em que possamos compreender a importância de preservarmos as vidas uns dos outros. Nesse momento de caos humanitário, diante de uma desigualdade que ceifa determinadas vidas de maneira sistemática, como a não-violência pode contribuir para a elaboração de uma inteligibilidade que identifique essas vidas enquanto vivíveis [livable lives] de fato?

Essa pergunta é excelente. Talvez nós tenhamos que voltar ao problema da “morte social” primeiro formulado por Orlando Patterson [sociólogo, autor de Slavery and social death, de 1982] em relação à escravidão. Frantz Fanon formula isso de uma maneira diferente, mas ele descreve, por exemplo, a experiência de ser um homem negro em uma sociedade pervasivamente racista como um “não-ser”, como um lapso em termos de ontologia. Reivindicar a própria existência não é algo fácil sob condições que negam a existência de certos indivíduos. Mas se olharmos com atenção para as estratégias de negligência ou de violência direcionada, vemos que elas presumem o caráter vivo daqueles que são assassinados ou deixados para morrer. Portanto, é preciso começar a analisar essas estratégias, entendidas como formas de lidar com a morte. Não haveria morte para se lidar se não houvesse vidas sujeitas à morte. Também temos que produzir teoria e contar histórias que não comecem com os pressupostos comuns, mas sim com o movimento de resistência. O que é essa reivindicação da condição de estar vivo feita pelos movimentos de resistência?

A invasão ao Capitólio, em janeiro de 2021, parece ser uma ação performativa coletiva que aponta para novas possibilidades de encenações fascistas e de rupturas democráticas radicais. Assim como outros levantes públicos da extrema direita no mundo, soa como uma apropriação perversa da potência das assembleias públicas. Você acha que essa invasão pode ser lida como marco de uma nova ordem de orquestração política dos corpos? Acha que terá alguma ressonância significativa?

Nos Estados Unidos, pelo menos, ficamos com a percepção de que, embora Trump não esteja mais no poder, os supremacistas brancos estão por toda parte. Eles não precisam ser organizados como a multidão que invadiu o Capitólio. Eles são os supremacistas brancos do dia a dia, que puderam votar em Trump, e o fizeram, e que reafirmam a organização racista da sociedade. Claro, os grupos de direita que invadiram o Capitólio estavam agindo “fora da lei” e até “contra a lei”, mas não são anarquistas de direita. Pois eles afirmaram o poder soberano de um presidente que imediatamente representou e decretou o poder executivo (de acordo com a lei) a fim precisamente de se colocar acima da lei. Essa formulação contraditória foi muito empolgante para aqueles que poderiam então atacar o governo em nome de um líder soberano. A tensão entre o Congresso e a Presidência tornou-se, por assim dizer, o novo termo para uma guerra civil em potencial. Os amotinados invocaram símbolos da guerra civil [1861–1865] e da era Jim Crow [no sul dos EUA, dos anos 1870 à década de 1960], me lembrando das observações de Marx sobre a reviravolta reacionária contra o proletariado, que se apropriou do simbolismo do Império Romano. E ainda assim, nada disso pode ser compreendido a partir das mídias sociais e das culturas de crença que as teorias da conspiração produziram. Uma revolta contra a democracia e a favor de um governo autoritário é bastante crível. E me preocupo com o Brasil, pois novas tensões surgem da retórica militar de Bolsonaro e das alianças em andamento com o poder militar. Mas sim, é hora de analisar uma performatividade reacionária em relação a novas formas de assembleias.

No contexto da pandemia do novo coronavírus, o número de mortos em um período tão curto e por uma única causa imprime um medo e um luto generalizados. Contudo, os rituais ligados à morte e à dor coletiva são impossibilitados de serem vivenciados da maneira como os conhecíamos. O enlutamento parece deixar de pertencer à esfera coletiva e se volta para o indivíduo. Quais implicações isso pode gerar em termos de uma mudança da potência política dos sujeitos?

As implicações disso são enormes. O luto público não é apenas uma forma de uma comunidade lembrar e reparar seus laços, mas também de reconhecer o valor daqueles que foram perdidos. É também uma ocasião para refletir sobre quantas vidas foram perdidas por causa de um fracasso das políticas públicas. O número de mortes evitáveis, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, é devastador, e todas elas devem ser contadas, devem ser levadas em conta. Desta forma, o luto e o protesto estão ligados, como vemos nas ações públicas contra o feminicídio, e no movimento Black Lives Matter.

A pandemia da aids foi enquadrada como um problema de nicho quando eclodiu nos anos 1980. A pandemia da covid-19 estende-se em escala global, evidenciando nossa precariedade e interdependência. No entanto, a curva das mortes não é homogênea: raça, classe, gênero e regionalidade são fatores de vulnerabilidade. Isso dificulta que o luto seja entendido em sua potência política coletiva? Ou se trata de um outro enlutamento de nicho, em que a “luta pela vida” assume diferentes sentidos de “luta” e “vida” para categorias sociais distintas?

Eu acredito que as reações públicas globais estão se movendo em duas direções ao mesmo tempo. Talvez seja uma oscilação entre dois sentimentos públicos diferentes, ou talvez seja a consolidação de um conjunto contraditório de forças sociais. Ainda não tenho certeza, e não estou certa de que alguém possa saber com certeza. Por um lado, o luto agora é privado ou localizado em comunidades do Zoom ou encontros informais fora de casa. Por outro lado, há a sensação de que o vírus pode afetar qualquer pessoa, não importa a nação ou a categoria social. Assim, nos atemos à interdependência global ao mesmo tempo em que somos afastados do mundo para dentro da casa ou para bolhas restritas. O ambiente doméstico contém suas próprias políticas sexuais e de gênero e se tornou o local da violência doméstica renovada e intensificada, com mulheres mais vulneráveis e mais exploradas pelo seu trabalho. Ao mesmo tempo, alguns ambientes domésticos se tornaram mais porosos, misturando-se com bairros, comunidades e redes virtuais. As comunidades de desabrigados estão agora ligadas a ativistas através de pontos de encontro públicos e conexões virtuais, e isso ajuda a desdomesticar as relações de parentesco. Ao mesmo tempo, o “global” deixa de ser uma abstração na medida em que os vírus detectados pela primeira vez em uma parte do mundo emergem em outras partes, nos conectando de uma forma estranha. Isso tem levado a algumas formas deploráveis de racismo, especialmente contra o povo asiático. Ao mesmo tempo, produziu uma solidariedade empática que pode nos auxiliar a pensar nas alianças globais necessárias para combater as mudanças climáticas e a violência nas fronteiras.

Por mais que seja impossível pensar em futurologia, é quase lugar comum afirmar que “um novo mundo” está sendo gestado, e a ciência parece ocupar um lugar de centralidade nessa transição para um mundo pós-covid-19. Nesse “novo mundo”, e nesse momento de crise, qual o lugar das ciências humanas e da filosofia?

Há sempre a questão do “valor”: quais vidas têm valor? E o que significa afirmar o valor de uma vida? Como esse valor é criado? Sob quais condições? E por quais valores nós lutamos que vão além, e contra, os valores de mercado? Estou menos preocupada com a ciência do que com as formas desiguais com que as vacinas estão sendo distribuídas. A ciência pode estar ligada à justiça social, e deve estar. A vacina deve ser um bem público. E eu me oponho a todos os direitos de propriedade sobre as vacinas. Portanto, a questão é como pensamos sobre o bem público fora dos termos restritivos da nação. Qual é o bem público para o mundo, para o planeta? Muitos filósofos e críticos estão agora pensando sobre isso, e a ciência não é necessariamente o inimigo.

A vacinação contra a covid-19 foi iniciada em diversas partes do mundo, e temos visto no Brasil uma postura fortemente negacionista por parte do presidente Jair Bolsonaro. Como você vê a conexão entre os governos da extrema direita populista, negacionismo e discurso anticientífico?

Em um nível básico, Bolsonaro (e Trump também) vê a doença como um ataque à sua masculinidade. Eles são fortes. Não têm medo. E pensam que a negação lhes dá uma chance de demonstrar uma transcendência super-humana em relação à vulnerabilidade corporal. Trump disse que “não queria correr para casa chorando para a mamãe”, o que era sua maneira de dizer que a dureza masculina diante do vírus significa não ter medo, não ter necessidades e, portanto, não ter realidade. É uma espécie de pulsão de morte no coração da [postura] defensiva masculina. Se eles não morrem, e não são vulneráveis à doença e à morte, então eles não são corpos do mesmo jeito que as outras pessoas são corpos. Essas outras pessoas são crianças, mulheres, idosos, deficientes. Portanto, há uma forma de negação que traz mais sofrimento, uma vez que ela não pode admitir que mecanismos de proteção são necessários. Esta forma de masculinidade convida o vírus a circular e a afetar um número cada vez maior de pessoas. Cuidar, tomar uma atitude de cuidado, seria tornar-se mulher (na mente deles). E, obviamente, eles prefeririam morrer a se tornarem mulheres. Acredito que esse argumento reforça a necessidade de que haja mais mulheres trans na saúde pública.

Vivenciamos um momento em que a gestão dos desejos é mediada pelos imperativos do capitalismo e se altera à medida em que suas regras internas se transformam. Em uma economia neoliberal dos desejos, são produzidos enquadramentos que impedem determinados corpos e vidas de serem desejáveis, e também impossibilitam esses corpos de vivenciarem sua potência plena enquanto sujeitos desejantes. Diante desse contexto, como podemos pensar em práticas desejantes revolucionárias? A constituição de um indivíduo enquanto sujeito desejante também faz parte de sua composição enquanto uma vida enlutável e digna de ser vivida?

Eu gosto dessa pergunta, mesmo não tendo certeza da melhor maneira de respondê-la. Não estou certa do que significa experimentar a potência total enquanto um ser desejante, e não sei se esse é o meu objetivo. Acho que o desejo sexual provavelmente inclui tanto o desejo de viver quanto o desejo de interromper a vida, e que tanto a pulsão de vida e a pulsão de morte estão ali misturados. Não tenho certeza de que essa seja uma perspectiva popular. Um dos problemas no capitalismo é que nós desejamos bens e formas de ser que, na verdade, prejudicam nossas vidas. Não existe um desejo “puro” que não seja afetado pelo mundo social e econômico. Portanto, a questão é como melhor viver e contestar a organização social do desejo por instituições como o casamento, a propriedade, o contrato, o lucro e, sim, o capital humano. A maioria dos sites de encontro são estudos sobre o capital humano na medida em que ele estrutura o desejo. Dito isso, há um risco generalizado de se tornar dormente em relação ao mundo, de não poder sentir ou reagir, pois parece que apenas o sofrimento está à espera de muitos de nós. O mundo que é lançado como “desejável” dentro do capitalismo não é um mundo que qualquer um pode ter, ou é um mundo que induz sempre a desejar mais. Por isso me pergunto como podemos pensar não apenas em comunidades de cuidado durante este tempo, mas em comunidades de desejo. Quais são as condições e relações que nos sustentam como seres desejantes? Que organização da vida sexual nos permite sentir vivos sem sermos expostos a danos, e sem causar danos? Essas me parecem ser as questões que o feminismo e os movimentos LGBTQI levantam continuamente. O resto do mundo deveria estar atento.

 

Fonte: Suplemento Pernambuco.

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