Por Winnie Bueno

Aquelas jovens que garimpavam textos ao mesmo tempo que escreviam foram meu esteio. Com elas enfrentei a naturalização, normalização e cotidianização das violências que me eram destinadas.

Quando eu comecei a acompanhar as discussões sobre feminismo negro nas redes a disponibilidade de materiais para fazer isso era muito pequena. A gente debatia em fóruns a partir de textos garimpados dos movimentos de mulheres negras já consolidados, como Gelédes e Criola, e a partir de traduções caseiras dos livros e de artigos que circulam hoje com facilidade nas redes. A internet foi o lugar onde eu tive o primeiro contato com mulheres que anos depois seriam aquelas que viriam a fazer partede uma geração de feministas negras que já foi jovem – e hoje já não é tão jovem assim.

As não mais tão jovens feministas negras da minha geração se preocupavam em compreender a tematização da escravização de negros e negras nas Américas a partir de uma perspectiva gendrada. Era ponto de partida teórico de discussões permeadas pelo cotidiano. O estudo dos clássicos do feminismo negro, com bastante destaque para os textos de bell hooks e Angela Davis , tomavam as discussões que acabam por constituir possibilidades de construção de saber mobilizadas pela construção do afeto. Ao mesmo tempo que a gente mergulhava nesses textos, a gente mergulhava nos anseios uma das outras, nas perspectivas, nos projetos coletivos que se desenhavam com o intuito de enegrecer o feminismo das redes sociais.

Ao mesmo tempo que compreendíamos como as análises sobre a escravização omitiram, ocultaram ou suprimiram o significado da violência de gênero para mulheres negras no período da escravização, reivindicávamos que nossas experiências não fossem ocultadas, omitidas e suprimidas dos debates sobre gênero e sexualidade que circulavam na internet. Naquela época, não havia o intuito de lucros e likes; até o lacre tinha outro sentido. hooks, Davis e Collins eram uma espécie de santíssima trindade das pretinhas blogueiras e a gente ia descortinando com elas a interseccionalidade como ferramenta analítica teórico-crítica. Teve até uma época em que a gente afirmava muito contundentemente um feminismo negro interseccional, que era nome de grupo com centenas de mulheres negras do país inteiro estudando, compartilhando, tecendo juntas.

Nunca mais esqueci do protagonismo de mulheres negras para resistir ao racismo. Entendi a função dos estereótipos e o motivo para rejeitá-los.

Ali a gente descobriu o discurso de Soujourneer Truth que dá título ao livro de bell hooks e que permeia as análises de Angela Davis em “Mulheres, Raça e Classe” – E eu não sou uma mulher?. Aprendemos que as palavras de Soujournner eram constitutivas daquilo que nomeia-se enquanto ponto de vista distintivo de mulheres negras. Entendemos juntas que o conhecimento produzido pelo feminismo negro tinha o caráter de um conhecimento de oposição. A gente fazia essa oposição, demarcava nosso lugar, reivindicava estratégias coletivas de resistência aos múltiplos sistemas de dominação que se articulam para nos manter em um lugar de subordinação.

Foi nesse lugar também que recuperamos a estética como forma de autodefinição. Partilhávamos o cuidado com nossos corpos, cabelos, peles ao mesmo tempo que aprendíamos sobre as críticas feministas negras a respeito da construção de uma ideia hegemônica de feminilidade. Tínhamos espaço para analisar e discutir a emancipação sexual de mulheres negras e para descobrir o quanto o racismo tinha nos impedido de exercer a própria sexualidade.

Das coisas bonitas que aprendi nesse período, com mulheres que eram como eu, nenhuma me marcou mais que a consciência da existência de lutas de mulheres negras desde pelo menos o século 19. Aquilo me fez entender que o feminismo negro não era uma novidade da chamada terceira onda feminista, tampouco um desdobramento do feminismo branco. Nunca mais esqueci da importância do protagonismo de mulheres negras e para as formas de resistência desenvolvidas por elas para resistir ao racismo em suas múltiplas dimensões. Entendi a função dos estereótipos e o motivo para rejeitá-los.

Foi nesse lugar que compreendi as preocupações de minha avó com a forma que eu sentava, vestia, andava. Entendi finalmente qual era a intenção da perpetuação da sexualidade de mulheres negras como desviante, parte central da construção do racismo e do sexismo na sua dimensão ideológica. Caiu minha ficha que a percepção social sobre os corpos, comportamentos, sexualidade e agência de mulheres negras não é construída a partir de mitos externamente definidos sobre elas. Construí conhecimento nos escritos Lélia Gonzáles, Sueli Carneiro e Luiza Bairros.

Entendi que não há hierarquia entre violências. Que a violência psíquica precisa ser combatida com a mesma obstinação que combatemos a violência física.

Aquelas jovens que garimpavam textos ao mesmo tempo que escreviam foram meu esteio. Com elas enfrentei a naturalização, normalização e cotidianização das violências que me eram destinadas. Entendi que não há hierarquia entre violências. Que a violência psíquica precisa ser combatida com a mesma obstinação que combatemos a violência física. Aprendi que as violências institucionais se valem das imagens de controle enquanto justificativa ideológica, mais ainda, entendi que a utilização massiva dessas imagens na comunicação de massas teve o papel de consolidar a ideia de que as mulheres negras são responsáveis pelas violências que sofrem.

A cada minuto nós tínhamos uma possibilidade de letramento que nos permitia analisar nosso cotidiano na complexidade. Aquela reunião de mulheres negras nos permitia olhar para as contradições da nossa própria gente.

Esse lugar, de humanização profunda, de compartilhamento de trajetória, de construção de ativismo, da formulação de contribuições político-teóricas não é mais o mesmo. Nossas preocupações ganharam outras preocupações. O aumento da nossa visibilidade individual, em muito, tomou o espaço da construção da nossa voz coletiva.

 

WINNIE BUENO Winnie Bueno é iyalorixá, pesquisadora e escritora daquelas que gosta muito de colocar em primeira pessoa sua visão do mundo e da sociedade. É criadora da Winnieteca, um projeto de distribuição de livros para pessoas negras.
Fonte: Gama Revista | Foto: Ricardo Jaeger.

Pavimentamos nomes importantes. Tensões importantes também. Em muito nossos desafios coletivos perderam espaço para a representação individual. O nós coletivo cedeu para o eu.

Mas ainda temos memórias. Revisitar essas memórias me convence que ainda seremos nós, que teremos vez e voz. Voz de milhões entoadas pelo coletivo, daquelas que eram jovens e hoje já não tão jovens assim seguem acreditando que só somos porque somos juntas.

 

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