Por Uribam Xavier

Uma análise a partir das ideias de Karl Marx, John Locke e Norberto Bobbio. Cada vez mais, ela parece se tornar obsoleta – inclusive para a manutenção da ordem sistema. Uma reforma não bastará: é o modelo ocidental de representatividade que está em crise.

 

“Aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína” [Caetano Veloso – Fora de Ordem].

Em fevereiro de 1819, Benjamim Constant pronunciou, na França, a sua famosa conferência: “Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos”, cujo texto é considerado fundante do pensamento político liberal. Uma de suas teses é a de que na modernidade podemos desfrutar do governo representativo, “o único sob o qual podemos hoje encontrar alguma liberdade e tranquilidade”. O governo representativo, diz Constante: “é o direito, para cada um, de influir sobre a administração do governo, seja pela nomeação de todos ou certos funcionários, seja por representação, petições, reivindicações, às quais a autoridade é mais ou menos obrigada a levar em consideração”.

No sistema-mundo moderno/colonial – cujo modo de produção é o capitalista imperial financeiro globalizado –, da extrema direita fascista, passando pelo centro, à esquerda, todos se dizem defensores da democracia. No Brasil, a extrema direita fascista e bolsonarista (autoritária, racista, machista, homofóbica, sexista, negacionista, misógina, terraplanista, genocida, etnocêntrica, militarista e golpista) se diz defensora da liberdade e da democracia. Será que existe alguma coisa fora de lugar quando corpos políticos de diferentes matizes ideológicos se dizem democratas? Falam eles da mesma coisa quando dizem que são fiéis defensores da democracia?

Será que no Brasil encontramos por parte dos partidos políticos e de suas lideranças um compromisso sério com a visão de democracia presente na nossa Constituição de 1988, que nos seus princípios fundamentais, artigo 1º, parágrafo único, afirma que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Já que para nossa Constituição o poder emana do povo, que pode exercê-lo diretamente, que condições deveriam ser dadas para que tal direito constitucional fosse efetivado?​

Pelos princípios fundamentais de nossa Constituição, o primeiro traço da democracia é o de ter o povo como sujeito instituinte e constituinte do poder. Todavia, não tem partido político e nem político empenhado em criar leis normatizando o direito do povo, entendido como o conjunto dos seus eleitores, como sujeito instituinte e constituinte do poder. Os mecanismos institucionais de participação direta na atividade de produção de leis e de políticas governamentais, como o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular, previstos na nossa Constituição de 1988 e aprovados para vigorarem nos níveis municipal, estadual e federal, são ignorados e não são estimulados. Quando parte da população se sente prejudicada por alguma medida, como um projeto de lei ou de mudança constitucional, manifestando sua desaprovação de todas as formas, e quando resolve ocupar as ruas para tornar seu descontentamento e reprovação a tais iniciativas dos poderes legislativo e executivo públicos, é reprimida pela força militar autorizada pelos que dizem representar o povo, numa verdadeira usurpação do poder, na qual quem representa desqualifica e debocha daqueles dos quais demanda constitucionalmente a sua representação.

O pensador político liberal moderno John Locke, que defende o sistema representativo, afirma que o poder emana do povo e que durante as eleições ou pacto o povo não transfere aos políticos o poder, o poder é intransferível, o que povo transfere por meio do voto é uma autorização temporária para ser representado, não o poder, ou seja, para John Locke poder e representação são coisas diferentes. Assim sendo, quando um parlamentar é identificado como agindo de forma a não representar mais os interesses do povo, pode ser imediatamente destituído da sua condição de representante, caso se recuse o povo pode fazer uso da força armada para lhe destituir do lugar por ter perdido a legitimidade para representar.

O que assistimos atualmente nas chamadas democracias representativas é uma usurpação do poder político por parte dos representantes eleitos que se comportam não como portadores temporários de representação, mas como donos do poder, como se o poder emanasse deles enquanto conjunto de representantes da sociedade. Assim, ao invés de criar leis normatizando o processo pelo qual os cidadãos possam destitui-los do poder quando traem os interesses públicos e da sociedade, eles consolidaram o discurso de que a culpa, nos casos de má utilização do mandato político, é do eleitor que não sabe votar, que vende voto, que vota porque alguém lhe pediu para votar em algum candidato, restando então para o eleitor apenas a oportunidade de votar de forma responsável numa próxima eleição.

Entender a democracia como sendo o sistema político no qual o poder emana do povo, como afirmado pela nossa Constituição, ou seja, entender a democracia como identidade do povo consigo mesmo, é assumir o grande problema da não disposição do povo para democracia direta, o que contribui para a usurpação do poder pelos que são autorizados temporariamente a agirem como representantes políticos. A usurpação do poder por parte dos três poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) acaba transformando a democracia num simulacro e num objeto de disputa de narrativas na luta do poder pelo poder por meio de campanhas eleitorais, pelas quais os candidatos e as candidatas buscam angariar votos para se elegerem como legítimos representantes do povo. Assim, pelo mecanismo das eleições, o voto do eleitor, que teria a função de legitimar a autorização temporária da representação, se transforma num mecanismo de transferência de poder não explicitado. O poder, assim, é usurpado. Além do mais, o político se torna um profissional do poder atuando num sistema de simulacro e por meio de um jogo de linguagem, nos quais ele aparece como representante de quem ele não representa (o povo, seus eleitores).

Aristóteles já identificava que as relações sociais de poder entre homens e mulheres, entre pais e filhos, entre senhor e escravo, entre mestre e aprendiz eram de natureza diferente das relações políticas, ou seja, entre governantes e governados, porque estas implicavam a existência de uma comunidade (koinônia) que não existia nas relações sociais de poder. No pensamento liberal moderno essa comunidade política é uma comunidade de eleitores e o poder político aparece como o poder que representa os interesses universais. Karl Marx identificou a necessidade da existência de uma comunidade necessária para a constituição do poder político como uma ideia ilusória, como uma forma abstrata de invisibilizar os interesses e conflitos de classes.

Para Marx, nas sociedades modernas, o Estado cumpre duas funções: se constitui como um instrumento (comitê) de gerenciamento dos interesses dos setores dominantes do capital (no Brasil epocal é bem claro como o Estado tem sido gerenciado, inclusive por Lula, em função dos interesses do capital financeiro, do agronegócio e do extrativismo mineral) e como instrumento de criação de leis que normatizam a conduta e a obediência da população. Esses dois mecanismos geram um processo de alienação pelo qual a desigualdade econômica real é a condição para a igualdade política formal. Assim, o poder político, junto com a exploração do trabalho, torna-se fonte de acúmulo de riquezas e um privilégio dos mais fortes e poderosos.

Podemos identificar certo desencantamento com os resultados da democracia pelo não cumprimento de suas promessas. Há um mal-estar estrutural, ou seja, objetivo, que diz respeito à inadequação de suas instituições como instrumento de representação dos interesses públicos e dos interesses da maioria da sociedade, como a não garantia de direitos sociais, a não distribuição de renda e a não proteção contra a violação dos direitos humanos. No Brasil, o Estado, por meio de seu aparato policial, é um dos principais promotores de violação dos direitos humanos. A polícia brasileira é uma das que mais matam no mundo, nela o racismo estrutural está entranhado nas suas práticas e procedimentos, ela mata de forma seletiva; mata pretos, pobres e favelados. A polícia militar brasileira é um laboratório de produção de milicianos que se tornou uma ameaça para a segurança pública do país.

A democracia moderna não tem estrutura institucional para garantir e efetivar as suas promessas, que são as mesmas promessas do capitalismo: garantia de liberdade, igualdade, direito à vida digna com qualidade para todos. Ao longo da modernidade a democracia tem sido desmoralizada pelos interesses e transformações do capitalismo. Como afirmou J. Chasin, “entre democracia e emancipação, na vigência da primeira a segunda fica excluída por inutilidade”.

Depois da crise estrutural do capitalismo; da falência do Estado de bem-estar social; da derrocada do socialismo, simbólica queda do Muro de Berlin; da prevalência do fim da história e do sujeito político e da hegemonia neoliberal entre os anos de 1970 e 1990 do século XX, se consolidou a ideia de Norberto Bobbio de que a democracia não era um conceito substantivo, não significava a garantia de participação da população dos membros de uma comunidade política na distribuição de riquezas socialmente produzida, mas era apenas uma formalidade: uma defesa das regras do jogo. Como afirma Bobbio, em seu livro O Futuro da Democracia: “a existência de grupos de poder que se sucedem mediante eleições livres permanece, aos menos até agora, como única forma na qual a democracia encontrou a sua concreta atenção”. Portanto, democracia é a garantia da ordem e não da transformação do sistema, é um instrumento de manutenção do mercado capitalista.

Em determinadas conjunturas políticas, como em períodos de crescimentos econômicos, que os economistas capitalistas chamam de milagre ou de ciclo virtuoso, pode haver melhora na qualidade de vida da população para alguns setores, mas mesmo em períodos de crise prolongada, nos quais a qualidade de vida das pessoas se deteriora, não se pode ter ruptura com o capitalismo. O Estado de Direito e a democracia formal podem ser rompidos para garantir a continuidade do capitalismo, como é o caso dos golpes militares, militar-civis ou políticos. No Brasil, tivemos a ruptura da ordem para garantir os interesses do mercado (capital) em 1964, por meio de uma ditadura militar/civil apoiada pelo império americano; em 2016, tivemos o golpe parlamentar contra Dilma e, durante todo o mandato de Bolsonaro, tivemos uma tentativa de um autogolpe e, depois das eleições, em 8 de janeiro de 2023, uma tentativa frustrada de golpe civil-militar contra o governo Lula, imediatamente a sua posse.

No Brasil do século XXI, a defesa da democracia pelas lideranças e partidos de esquerda é uma posição conservadora de defesa da ordem capitalista e da sua formalidade, ou seja, é uma defesa das regras do jogo e dos interesses do mercado, mesmo quando rivaliza com o mercado na disputa de parte do orçamento; para realizar políticas públicas e sócio-inclusivas não se vai além de afirmar que “gastos sociais em educação e saúde não são gastos, mas investimentos”. Educação não é gasto e nem investimento, mas direito universal. Só para o neoliberalismo, que nega o direito à educação ou o pensa como política social compensatória ou limitada (como investimento em mão de obra qualificada para o mercado), educação não é um direito.

Nos dois primeiros governos do PT, tendo Lula como presidente, se perdeu a oportunidade de se fazer reformas estruturais de enfrentamento sistêmico. No seu terceiro mandato, Lula abriu mão de anular reformas de interesses do mercado, como a reforma trabalhista e a reforma da previdência, e deu continuidade às reformas liberais ao aprovar o arcabouço fiscal, cedendo a todas as chantagens do mercado, e vem relutando em atender o clamor da sociedade para que revogue o Novo Ensino Médio – NEM, que foi estruturado a partir das diretrizes elaboradas pela Fundação Lemann e do Movimento Todos pela Educação – TPE, o maior movimento empresarial de educação do país. É bom lembrar que o Ceará, administrado por Camilo Santana do PT, foi o laboratório de experimento do modelo de educação da Fundação Lemann. Camilo tornou-se, no terceiro mandato de Lula, o ministro da educação, que nomeou Kátia Schweickardt, membro da Fundação Lemann e consultora do TPE, para a Secretaria de Educação Básica.

A maior expressão da política de esquerda brasileira, Lula, não esconde que o modelo de democracia que ele defende e acredita é a democracia como defesa das regras do jogo, a democracia da ordem. Lula tem orgulho de afirmar que, contra as tentativas de ruptura da ordem praticadas por Bolsonaro, ele é um defensor da ordem e usa o argumento para se legitimar diante do mercado. Ele faz questão de repetir que todas as vezes que perdeu uma eleição reconheceu o resultado, foi curtir seu luto pela derrota e se preparar para a disputa seguinte. Portanto, a chamada esquerda, ao ter renunciado à luta contra a ordem capitalista, acabou atolada na luta do poder pelo poder. Assim, a democracia se consolida como o instrumento que permite a produção e reprodução do capital, passando a ideia de que as desigualdades sociais, as injustiças, a destruição da natureza e a não resolução dos problemas concretos da população são uma questão de gestão, de governabilidade e a solução é a troca de um governo incompetente por um competente, garantida pela regra do jogo, e não um problema da natureza mesmo do capital.

No século XXI, a crise estrutural do capitalismo vem dando indicação do seu agravamento, por meio da ampliação da pobreza, das desigualdades sociais no mundo, da concentração de renda e da transformação de grande parte da população de todos os continentes em miseráveis nômades (composto por migrantes empobrecidos, por refugiados políticos e de guerras). Estamos assistindo a proliferação de guerras, algumas não divulgadas, como as que vêm acontecendo na África, porque não é do interesse dos países mais ricos do sistema por ser desprovida de riqueza, e de anúncios constantes das urgências climáticas causadas pela destruição permanente do meio ambiente, tratado como matéria-prima para a transformação de mercadorias. Tal cenário vem demonstrando que a democracia está se transformando em um instrumento obsoleto, inclusive, para manutenção da ordem sistêmica. Daí porquê o crescimento da extrema direita fascista no mundo, por meio das regras do jogo, mas que não tem compromisso com as regras do jogo, pode indicar que estamos vivendo em um mundo que exige um intenso pensamento crítico em busca de resposta coletiva para as diversas formas de vida existentes no mundo, precisamos pensar em alternativas sistêmicas que nos possam servir de horizonte para a ação presente e que rompam com o ciclo político da ordem. Vivemos num mundo onde o chamado neodesenvolvimentismo e o desenvolvimento sustentável, que parecem uma construção, como diz Caetano, já são ruínas. Precisamos pensar, a partir e dentro dessas ruínas, num mundo transmoderno e pluriversal, como o proposto pelo pensamento decolonial.

 

Fonte: Outras Palavras | Foto: Ricardo Moraes, Reuters.

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