Por Douglas Rodrigues Barros

Maestri mostra a preocupação burguesa com os problemas não resolvidos no autodenominado mundo livre. O problema central: a racialização, herança dos processos coloniais. Entretanto, pouca importância dá ao que está subjacente: a incapacidade do desenvolvimento do capital em superar a herança colonial encravada no seu embrião.

Habemus identitarismo. Esse fato é reconhecido por qualquer um. O que ainda está por vir é uma crítica que dê conta do fenômeno. O último artigo escrito por Mario Maestri, A questão negra: a Fundação Ford e a Guerra Fria – A TERRA É REDONDA (aterraeredonda.com.br) por exemplo, sintomaticamente recai no mais banal politicismo ao fazer uma análise da superestrutura sem dar qualquer relevância à base. Que “as ideias dominantes são as ideias da classe dominante” e, portanto, ela financia a circulação de suas próprias ideias, sabemos pelo menos desde o século XIX. Afinal, acredito que não há um único cristão que acredite efetivamente na neutralidade científica ou acadêmica.

Maestri, no entanto, parece acreditar. Ao brandir com razão contra a Fundação Ford, faz de suas análises uma relação de causa e efeito, entre o financiamento e o resultado das pesquisas, que transforma de maneira imediata o horizonte político-social. O mundo nasce então, mais uma vez, da cabeça dos filósofos. A contradição, a recepção e o debate simplesmente desaparecem. O intelectual se reduz a um funcionário público fabricando diuturnamente uma novílingua. E, vejam, são grandes os intelectuais nomeados: de Abdias Nascimento a Florestan Fernandes passando por Castoriadis desembocando em Žižek. Todos lacaios da gramática fordista. Na noite da escrita de Maestri todos os gatos são pardos, mistura-se integralista não arrependido, stalinista ressentido com Tito e filósofo autonomista.

Beleza. Maestri mostra a preocupação burguesa com os problemas não resolvidos no autodenominado mundo livre. O problema central: a racialização, herança dos processos coloniais. Entretanto, pouca importância dá ao que está subjacente: a incapacidade do desenvolvimento do capital em superar a herança colonial encravada no seu embrião. Nos anos 1950 fica evidente para todo mundo algo que o conservador Tocqueville previu: a democracia liberal era incapaz de resolver o problema da raça. O direito, base de sustentação da democracia-liberal, na sua imparcialidade organizada a partir da abstração da realidade histórica, se via numa encruzilhada. Com os modelos aritméticos de abstração em nome da troca e dos contratos, o direito burguês pós-Segunda Guerra, ante contradições no terreno social, se deparou com o seu reflexo: sua universalidade estava restrita ao homem branco e proprietário. Esse reflexo, no entanto, não foi encontrado graças à reflexão dos intelectuais burgueses, mas sobretudo às lutas que se processaram no solo dos EUA e das colônias britânicas. Lutas aliás que inúmeros à época chamavam de “selvagens”, feitas por negros descontrolados.1

Diante da incapacidade de manter sob controle as lutas que se desenvolviam, diante do crescimento das lutas de libertação no continente africano e do questionamento do apartheid explícito inglês e do implícito americano, era preciso remediar a situação. Era preciso conhecer os motivos e fomentar uma teoria que refreasse o impulso das lutas. Não há dúvidas de que todos os esforços dos governos americano e inglês se voltaram para atá-las aos limites do modo de sociabilidade posto, limitá-las à ordem. O que devemos duvidar então é da causalidade exposta no artigo de Maestri que transforma essas teorias em causa do identitarismo sem levar em consideração a multiplicidade das condições de possibilidades que organizaram o horizonte das chamadas “políticas de identidade” como finalidade última da política. Para isso, Maestri teria que responder o que é identitarismo. Algo que fica ambíguo e sem respostas ao longo do artigo.

Maestri confunde causa e efeito e faz disso uma teleologia em que a Fundação Ford, financiando intelectuais mundo afora, foi a causa do identitarismo e não um efeito de processos mais profundos, tais como; 1) a incapacidade no que se refere à absorção equânime da diferença racial ou de gênero no capitalismo; 2) a necessidade, para a manutenção do metabolismo capitalista, de que as lutas se redirecionassem para a tentativa de inclusão e fosse a partir de então tornadas objeto do direito; 3) a transformação radical dos processos produtivos do capitalismo a partir dos anos 1970 que porão fim ao sujeito da era fordista impondo uma crise permanente ao mundo do trabalho e; 4) A revolução das comunicações que organizou uma sociedade de fluxos de mercadorias, interconectada e global. Como, para Maestri, o identitarismo é fruto do financiamento do imperialismo e não de diversos fatores que transformaram radicalmente a sociedade global contemporânea, logo torna-se um ato volitivo, garantido pela força demiúrgica do imperialismo, assentado por think tanks, CIA, OTAN et. caterva.

Bastaria então levar luz às pessoas enganadas pelos maldosos financiamentos universitários que conduziram à construção de uma gramática no interior dos pressupostos lógicos do capitalismo. O identitarismo é assim uma questão de falsa consciência. E a verdadeira, é claro, está nas mãos de supostos “marxistas” treinados na “luta de classes” educando as pessoas racializadas e despertando a consciência delas para aquilo que “realmente” importa. Há verdades na sua escrita, é obvio, mas são obliteradas pelas conclusões que tira. Imperialismo, por exemplo, parece ser um leviatã sempre de olho em tudo, inclusive nas entrelinhas de Castoriadis, um big brother que tudo vê. Não há uma única linha sobre o capitalismo contemporâneo e as relações concretas nos jogos do capital global. Nada se diz sobre a reestruturação produtiva que impôs uma nova racionalidade que entra em xeque a partir de 2008. Momento em que o identitarismo se torna hegemônico no mundo todo a despeito do espectro político.

O tom é o do politicismo. Há o bem e o mal. O Grande Irmão treinará seus intelectuais que virão desembarcar no Brasil para fazer guerrilha cultural. Maestri chega a dizer que Abdias do Nascimento era figura completamente desconhecida, ignorando o fato de que no desembarque estava Lélia Gonzalez para levá-lo às escadarias do Teatro Municipal afim de fundar o MNU (Movimento Negro Unificado) em 1978. A análise que Maestri faz do identitarismo, portanto, recai num reducionismo descrito pela teleologia que vai da fundação da Fundação Ford em 1936 até a hegemonia do discurso identitário no século XXI. Na noite da escrita de Maestri até Žižek é um filósofo multiculturalista. Anátema que faria o filósofo esloveno coçar o nariz and so on

Como reduz o identitarismo à ideia de um complô imperialista para organizar uma guerrilha cultural financiando as melhores mentes, é evidente que Maestri não saiba que sofre daquilo que visa criticar. Quer dizer de um tipo específico de identitarismo: o marxista. Um identitarismo marxista? Para entendê-lo, quatro especificações mínimas se fazem necessárias: 1) a reestruturação produtiva que coloca em xeque as categorias marxistas usadas até a exaustão durante o regime fordista; 2) a financeirização da economia possibilitada pela revolução nas telecomunicações que organizam mercados globais interconectados e em tempo real; 3) o advento da revolução da Internet e; 4) a construção de uma Weltanschauung [visão de mundo] individualista e empreendedora a partir da adesão popular ao neoliberalismo.

O identitarismo é um fenômeno só possibilitado pelo capitalismo tardio e sua profunda revolução na tecnologia da informação. O marxismo por sua vez só se torna um identitarismo quando, consagrado aos espaços acadêmicos, se torna refém da exegese e quando, consagrado às organizações de esquerda, se torna refém do credo. Sem conseguir dar mais respostas efetivas à realidade concreta, se recolhe às “igrejas”, se sagra como ideologia revolucionária e como modo de vida que exige uma identificação espetacular. Nem todo marxismo é identitário, mas como o identitarismo é um fenômeno mais profundo do que soa por aí, também seus adeptos não raramente caem nas armadilhas da identidade. Debates bizantinos sobre categorias e seitas divergentes do marxismo convocam à identidade de grupo que passa a ser operacionalizada por modelos algorítmicos criando bolhas de identificação.

Identifico, portanto, nas quatro transformações acima as portas para lidar com a noção de identitarismo. É um trabalho ainda a ser feito, mas que alguns já deram importantes passos em sua direção.2 O que é preciso ser feito de maneira urgente é abandonar a superficialidade do debate que ainda recai na falsa dicotomia raça-classe ou na ideia de que a culpa pelo identitarismo é dos movimentos sociais, do leviatã ou do estudante negro bolsista de alguma fundação. Uma das saídas dessa pseudocrítica é voltar a pensar a tensa relação político-econômica e os processos de transformação do capitalismo tardio. Por exemplo, não se sabe ao certo se foi a reestruturação produtiva que impulsionou a revolução informacional ou foi ao contrário. Podemos pensar que ambas ocorreram de maneira paralela se retroalimentando. Tratou-se certamente de uma revolução que modificou a relação com o espaço e o tempo, transformando a relação de trabalho e reconfigurando o horizonte de expectativas sociais. A globalização do capitalismo, um passo além da mundialização, rompe a lógica espaço-temporal quando o capital e suas mercadorias rompem fronteiras.

Na base dessa transformação se traduziu uma nova noção de sujeito própria às novas dinâmicas que precisavam, do ponto de vista do regime capitalista, evitar a conflituosidade política. Com a globalização dos mercados, tornou-se necessário um profundo engajamento institucional para operar a viabilização dos negócios intercontinentais. Isso só se tornaria possível graças às transformações nas comunicações. Assim, a mudança operada na forma da reprodução social causou uma mudança no tempo relacionado às novas formas de produção. A revolução tecnológica informacional, que passa a se processar na década de 1970, foi fundamental para reestruturar a base da reprodução social dando-lhe uma dinâmica de aceleração do tempo e transformação do espaço global através da interconexão e conexão logística. Também, a interconexão alcançada pelos mercados impôs uma nova relação entre o Estado e a sociedade criando um novo paradigma de acumulação baseado na financeirização e no crédito ligado às novas ferramentas que gerariam a Internet. Foi a tentativa de respostas ao aumento da produtividade ligada ao decréscimo da taxa de lucro.

A flexibilização do trabalho, causada por uma mudança de ordem estrutural no capitalismo, impõe uma individualidade baseada sobretudo no discurso da especialização. Se desde Goethe os anos de formação eram aqueles que cavavam nosso lugar ao sol no mundo burguês, agora a flexibilização do trabalho impõe a especialização do indivíduo para adentrar ao mercado privilegiando o currículo. As formas de subjetivação passarão pela ruptura com a ideia do sujeito trabalhador e, em seu lugar, se coloca o sujeito empreendedor. Evidentemente esse processo é lento e gradual, alcançando sua forma acabada apenas nos anos 2000.

A descentralização das empresas e a intervenção estatal, para desregulamentação dos mercados, tornaram-se formas necessárias para o novo impulso de acumulação. Este é o solo em que o neoliberalismo se apresenta como racionalidade e sob o qual o identitarismo se torna frutífero: os processos de transformação tecnológica e econômica operarão mudanças sociais dramáticas reordenando a visão de mundo contemporânea. Na vanguarda dessas mudanças está um novo paradigma tecnológico que redefine a experiência social e a forma de construção dessa mesma experiência: a microeletrônica, a computação (software e hardware) a radiodifusão, a opticoeletrônica e por fim o smartphone. A tecnologia da informação redefine a sociabilidade global detendo uma importância cada vez mais fundamental.

Na interconexão propiciada pela internet, a flexibilidade do tempo rompeu inclusive a lógica serial do relógio industrial. Criaram-se regimes temporais que romperam com a ideia de dia e de noite. Para transações e organizações de fluxos não mais importa a barreira natural dos países. Há, portanto, a aceleração dos fluxos, que rompem com a esfera da circulação, e a transformação do tempo proporcionados pela tecnologia. Assim. o processo de aceleração da realização da mercadoria nos espaços geográficos convergiu para transformar a circulação em fluxo, autonomizando as transações financeiras da produção real em nome das garantias futuras. O capital torna-se fictício e especulativo confundindo-se à ordem do passado, do presente e do futuro. O futuro já está posto mediado pelo crédito e vivemos num eterno presente de reposições de passados que se processam ad infinitum.

O processo de globalização se revelou uma marcha lenta, gradual, mas irrefreável. Alicerçada nas novas necessidades de manutenção do crescimento econômico, que desde os anos 1970 se tornou pífio, e na tecnologia da informação, como cerne de gestão dos processos em rede e fluxos, a globalização econômica acelerou em escala assustadoramente inédita o ritmo da produção. A gestão logística da produção de bens e serviços se tornou possível graças à internet. Isso provocou uma revolução espaço-temporal que se traduzirá numa redefinição traumática nos modos de sociabilidade. Se a identidade cultural era presumida pela territorialidade do indivíduo, o contato cosmopolita fornecido pelas telecomunicações embaça a visão de si. Mas isso não é o mais importante aqui. A questão é como o Estado assume o papel de vigia e guarda de trânsito – para usar a expressão favorita dos teólogos neoliberais – não apenas para organizar a (des)regulamentação econômica como também para evitar qualquer conflito político, sobretudo, ante às identidades historicamente excluídas. O direito privado tensiona o direito público, e aquela universalidade do branco proprietário é posta em xeque pela própria burguesia.

A consolidação da identidade, sempre imaginária e uma ilusão subjetivamente necessária, será totalmente afetada por esse processo. Condicionada pelos dispositivos estatais, esvaziada dos seus processos históricos, a identidade se tornará uma commoditie. A comoditização da identidade, violentamente, imporá a necessidade de seu fechamento para ser passível de representação nos aparatos jurídicos.  Assim, a esfera da judicialização da vida privada nos conduziu, na virada do século XX para o XXI, para a construção de dispositivos jurídicos voltado às identidades – agora esvaziadas pela compensação na esfera econômica por meio de demandas endereçadas ao Estado. Esse processo arrastou consigo todo um debate sobre o estatuto ontológico das identidades excluídas da modernização capitalista. Acabou por confinar as identidades às formas de nomeação dadas pelos dispositivos estatais.3 O reverso da moeda, com a crise de 2008, é a crescente racialização e a exclusão das diferenças que hoje fomenta o fascismo mundo afora.

O identitarismo, portanto, mais do que um ato do leviatã imperialista, se traduz, na própria forma de organização de uma pseudopolítica reduzida à gestão na globalização capitalista. A representação de demandas de grupos ao Estado condiciona a gestão de conflitos e oblitera qualquer possibilidade efetiva de transformação. É um fenômeno muito mais profundo e com implicações muito mais radicais do que aquilo que aparece nas linhas de Maestri que, infelizmente, parece culpar os identitarizados pelo próprio identitarismo.


Notas
1 Cf. DEBORD, Guy. O declínio e a queda da economia espetacular mercantil. In. Situacionistas: teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad editora do Brasil, 2002.
2 Manuel Castells, Assad Haider, Cornel West, Paul Gilroy, entre outros.
3 Cf. O que é isto, o identitarismo? – meu novo livro que está no momento no prelo e, provavelmente, será lançado ainda esse ano.

***
Douglas Rodrigues Barros é escritor, doutor em Ética e Filosofia política pela Unifesp, editor e conselheiro editorial do Lavra Palavra e autor dos livros Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial (Hedra, 2019) e Racismo (Fibra/Brasil, 2020). Militante do movimento negro, foi coordenador político da Uneafro.

 

Fonte: Boitempo.

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