Por Clarissa Galvão

“Eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo”, Clarice Lispector. Muitos são os sentidos que podem ser depreendidos dessa frase em uma reflexão sobre as relações entre o corpo e a literatura, especialmente a escrita por mulheres. Graças aos movimentos e teorias feministas, as explicações binárias do mundo, utilizadas para justificar desigualdades como consequências naturais de diferenças, foram questionadas. Apesar das fendas e conquistas oriundas dessas disputas, as reverberações simbólicas e materiais do binarismo, reducionista e violento, seguem presentes. Em A poesia não é um luxo, Audre Lorde diz: “Os patriarcas brancos nos disseram ‘Penso, logo existo’. A mãe negra dentro de cada uma de nós – a poeta – sussurra em nossos sonhos: ‘Sinto, logo posso ser livre’. A poesia cria a linguagem para expressar e registrar essa demanda revolucionária, a implementação da liberdade”. Não seria absurdo dizer que somente um homem branco poderia afirmar a sua existência por meio do pensamento, ou mesmo explicar a criação do mundo através de uma sentença como “No princípio era o Verbo (…) e o Verbo se fez carne e habitou entre nós”.

Rose Marie Muraro, no prefácio de O martelo das feiticeiras, desvelou o significado oculto de tais sentenças bíblicas: o acordo entre os patriarcas no qual se ofertava a terra prometida em troca da adesão ao monoteísmo, o que na prática implicou o fim do culto às diversas deusas da fertilidade e um golpe no poder social das mulheres. O Deus todo-poderoso criador do céu e da terra, por meio do Verbo, apropriou-se do papel das mulheres na reprodução da vida, apagando a sua dimensão material e corpórea. Não por acaso, Adão se fez do Verbo, mas Eva, a culpada por nossa expulsão do paraíso, foi feita da costela de Adão.

Na base da dominação masculina, estão diversos pares binários como espírito e matéria, mente e corpo, obviamente homens e mulheres, brancos e negros, ricos e pobres, civilizados e primitivos, héteros e homoscis e trans. A lista é grande e parece seguir se atualizando, mesmo com todas as disputas e os questionamentos das relações hierárquicas, às vezes sofisticadamente mascaradas, nos argumentos que embasam tais projetos de poder. Sendo importante destacar que a separação entre corpo e mente, e a supervalorização do pensamento, são uma estratégia para subjugar corpos outros, que precisam ser colocados como inferiores e passar por diferentes processos de desumanização, para que possam ser impunemente explorados, de múltiplas maneiras.

E o que isso tem a ver com esta leitura (a qual, diga-se, não pretende desvelar as intencionalidades da autora) da frase de Clarice, mencionada na abertura deste texto? Tudo, eu diria. Embora as pessoas não existam apartadas de seus corpos (que contêm a mente e o espírito, para quem nele acredita), os cânones intelectuais, nos mais variados campos da produção de conhecimento, foram propositalmente construídos a partir da negação desse fato, para também nos convencer da existência de um sujeito universal, evoluído, superior à matéria, dedicado a existir através da razão. Sem nenhuma surpresa, sabemos que tal sujeito é o homem branco, dono do poder. Várias teorias, nos campos científicos, religiosos, e artísticos foram elaboradas para fundamentar a crença no valor e na importância de tal sujeito universal, e da racionalidade, para o “progresso” da humanidade. Para entender o que significa escrever com o corpo, devemos nos perguntar, portanto, como esses arranjos impactam a dimensão material das relações sociais entre os gêneros. Ou seja, como o patriarcado e o capitalismo organizam o mundo do trabalho a partir de uma divisão sexual, que se reflete em várias áreas, inclusive, no mundo da arte. A divisão sexual do trabalho “tem por características a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a ocupação pelos homens das funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares etc.). Essa forma de divisão social do trabalho tem dois princípios organizadores: o da separação (existem trabalhos de homens e outros de mulheres) e o da hierarquização (um trabalho de homem “vale” mais do que um de mulher) (Danièle Kergoat para o Dicionário crítico do feminismo)”.

Tal lógica de organização da produção e reprodução é responsável pelo fato de uma enorme quantidade de trabalho ser realizada pelas mulheres, de forma invisível e gratuita, de modo constante ao longo do tempo. Trabalho que não é feito para si, mas para os outros, e imposto em nome de uma falsa natureza feminina, ligada ao cuidado e ao dever maternal. “Aquilo que chamam de amor é trabalho não remunerado”, como denunciaram as feministas na década de 1970.

Pois bem, como, imersas em infindáveis jornadas de trabalho, com os corpos dedicados aos inúmeros afazeres que garantem a continuidade da vida no planeta, poderiam as mulheres produzir trabalhos intelectuais e artísticos que atendessem às exigências do cânone, aquele dedicado ao elevado espírito, que pensa, logo existe? “Todos os dias tento escrever. É mais difícil em casa, onde há os telefonemas, Linn, babás, vizinhos. Se eu fosse homem, então seria diferente. A profissão de um homem é muito mais respeitada, assim como o trabalho que ele faz em casa, seu cansaço, sua necessidade de se concentrar. (…) O sucesso obtido na profissão, e tentar escrever um livro, não compensam falhas domésticas tão óbvias quanto as minhas” (Liv Ullmann, Mutações). Os “monstros da arte” serem, tradicionalmente, homens não é um indicador de sua superioridade ou vocação inata ao mundo intelectual, mas uma consequência da aliança entre o patriarcado e o capitalismo, um símbolo e uma prova do quão bem-sucedida é a dominação masculina.

No livro Daily Rituals: how artists work, de Mason Currey, podemos confrontar como era a rotina de trabalho de grandes artistas, homens e mulheres, de classes e raças diferentes, e como os seus corpos e suas marcas, por assim dizer, atravessam seus trabalhos. Freud, que não conseguia imaginar uma vida confortável e feliz sem o seu trabalho, deixava a cargo de Martha, sua esposa, a administração não só da casa – ela separava as roupas que ele vestia diariamente, escolhia seus lenços e até mesmo colocava a pasta de dentes em sua escova. Não haveria Nabokov se sua companheira, Vera, não fechasse seu guarda-chuva e lambesse os selos de suas cartas. Gustave Flaubert começou a escrever Madame Bovary logo após se mudar para casa de sua mãe, depois de passar dois anos viajando pelo Mediterrâneo. Thomas Mann entrava em seu escritório às 9h da manhã, fechava a porta, e ficava indisponível para qualquer demanda.

Ao contrário, o capítulo sobre Jane Austen destaca na primeira frase que ela nunca desfrutou de silêncio para escrever e que o fazia em meio a um espaço coletivo onde a vida da família acontecia cotidianamente. Diante disso, eu me pergunto: quanto trabalho silencioso de mulheres é necessário para produzir um monstro da arte que pensa, logo existe?

Virginia Woolf no clássico Um teto todo seu traz provocações importantes sobre as diferentes condições para a produção de uma obra de arte por homens e mulheres. O argumento central é: “uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção”. Woolf escapou dos trabalhos disponíveis para uma mulher de sua classe social (leitura para senhoras idosas, professora de jardim de infância, artesanato de flores naturais) e do silenciamento quando recebeu a herança de uma tia falecida. A vida material garantida a libertou de algumas amarras patriarcais. “Deveras, o legado de minha tia revelou os céus para mim e substituiu a figura grande e impositiva de um cavalheiro, que Milton recomendava para minha adoração perpétua, por uma vista do céu aberto.” Em razão da divisão sexual do trabalho, o acesso das mulheres à educação era, quando não negado, dificultado. Para que estudar se você vai passar a sua vida cosendo meias e preparando a escova de dentes de seu amado cônjuge?

Mais à frente, Woolf lança as seguintes perguntas: “ Por que os homens bebem vinho e as mulheres, água? Quais as condições necessárias para a criação de obras de arte?” Busca respostas na biblioteca do Museu Britânico e encontra, espantada, uma enorme quantidade de livros escritos por homens sobre as mulheres. Diante dos equívocos e absurdos proferidos pelos homens especialistas no gênero feminino, a autora chega à conclusão de que a defesa da inferioridade das mulheres era também a principal fiadora da desproporcional autoconfiança dos homens.

“As mulheres têm servido há séculos como espelhos, com poderes mágicos e deliciosos de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho natural. (…) se ela resolver falar a verdade, a figura refletida no espelho encolherá; sua disposição para a vida diminuirá. Como ele continuará a fazer julgamentos, civilizar nativos, criar leis, escrever livros, vestir-se bem e discursar em banquetes, a menos que consiga ver a si mesmo no café da manhã e no jantar com pelo menos o dobro do tamanho que realmente tem?”

Em resposta a um bispo que havia declarado a impossibilidade de uma mulher se igualar a Shakespeare, ela lança um exercício especulativo genial: digamos que tal autor tivesse uma irmã tão talentosa quanto ele, o que teria acontecido a ela, Judith? Bom, o bispo tinha parcialmente razão, seria impossível uma mulher ser Shakespeare, naquela época, mas não por razões de mérito, e, sim, pelos efeitos de desigualdade entre os gêneros. “Na verdade, arrisco-me a dizer que Anônimo, que escreveu tantos poemas sem cantá-los, com frequência era uma mulher.”

A escolha do anonimato, nomes ambíguos ou masculinos foi uma estratégia para as mulheres furarem os bloqueios ao discurso público feminino ao longo dos séculos. Jane Austen, de origem aristocrática, publicou todos os seus livros anonimamente. Amandine Dupin, também aristocrata, escreveu mais de 80 livros, quase todos assinados como George Sand. Nome que chegou a ser apontado por Fiódor Dostoiévski como o de um jovem escritor a ser acompanhado. As irmãs Brontë também publicaram como os irmãos Bell, durante um tempo, entre outros casos. No Brasil, por exemplo, Maria Firmina dos Reis, autora do primeiro romance abolicionista de nossa literatura, Úrsula (1859), assinou o texto como “uma maranhense” e só recentemente teve sua autoria descoberta e reconhecida. Essas estratégias não ficaram no passado, nos anos 1990, J.K. Rowling teria abreviado e escondido o seu primeiro nome, Joanne, por sugestão do editor para aumentar as chances de os seus livros serem lidos por meninos. Em 2015, a escritora americana Catherine Nichols resolveu fazer um experimento: mandou um manuscrito com seu nome e com o nome masculino para várias editoras e se deparou com o seguinte resultado: com o seu nome, teve duas respostas positivas em 50 tentativas; com o nome masculino, teve 17 positivas para as mesmas 50 tentativas. Os grandes intelectuais sem corpo seguem dominando os espaços de poder e perpetuando os seus clubes do Bolinha, a despeito de algumas importantes rachaduras nessa estrutura produzidas pela lutas das feministas.

Se para mulheres brancas, aristocratas, europeias era/é difícil romper barreiras e ocupar espaço no mundo das artes, a partir de suas experiências, corpos e com seus nomes, podemos imaginar quais as condições para mulheres negras, latino-americanas, africanas, asiáticas, de classes populares, na luta pela sobrevivência, imersas em um cotidiano de brutal exploração, sentirem, logo existirem e produzirem sua arte. Claro está que esperar pelo teto, por uma vida material remediada, para escrever não vai funcionar e não as fará ser ouvidas.

No ensaio Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo,Gloria Anzaldúa pontua que os perigos enfrentados pelas mulheres de cor, escritoras, são diferentes, ainda que haja algo compartilhado com a experiência das mulheres brancas. “Com poucas chances de termos amizades nas altas cúpulas literárias, a mulher de cor estreante é invisibilizada tanto no mundo do mainstream dos homens brancos quanto no mundo das mulheres brancas feministas, mesmo que o último esteja gradualmente mudando. A lésbica de cor não é invisível apenas, ela sequer existe. Nossa fala, também, é inaudível. Nós falamos em línguas, como o pária e a louca.”

O mundo branco colonial desumaniza e demoniza, como estratégia, os outros que deseja explorar e aniquilar. Não há interesse em conhecer, ouvir, ler as manifestações culturais, visões de mundo e epistemologias produzidas por tais corpos. Como ousa o subalterno falar? “Como ousei sequer considerar me tornar uma escritora enquanto me agachava nos campos de tomate, curvando, curvando sob o sol quente, mão grossas e calejadas, não feitas para segurar a pena, entorpecida num estupor animal com o calor”, diz Anzaldúa no mencionado ensaio.

“Posso criar um monstro/ o tamanho e o corpo da palavra/ inchando em cor e emoção/ pairando sobre minha mãe, em vestes típicas./ A voz dela lá longe/ analfabeta e incompreensível./ Essas são as palavras do monstro”, escreveu Cherríe Moraga.

Podemos nos considerar irmãs, desde que reconheçamos que viemos de famílias muito diferentes e as amplas consequências disso no cotidiano e nas possibilidades de vida e de futuro de cada qual. Nesse bojo, e partindo da reivindicação da escrita como trabalho empreendido por diferentes corpos, que são territórios políticos em conflito, escritoras brancas e de cor, para usar a terminologia de Anzaldúa, ao ousarem falar e se fazer ouvir, abrem fendas que solapam o cânone dos homens do espírito. Assim, desvelam-se as condições do apagamento do corpo na produção artística, os projetos de poder que estão em sua base, e as suas consequências nas vidas dos outros do sujeito universal. Aquele que segue acreditando na superioridade do corpo à matéria, às custas da exploração e do apagamento daquelas que tornam os monstros fantasmagóricos da arte possíveis.

Fonte: Suplemento Pernambuco.

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