“Acredite que nós não o esquecemos e que aqui se fala sempre de você. Há uns dez dias, eu falava de você com Métraux e ele me dizia que ele tinha, como eu, “a saudade” de revê-lo. Nós pensamos que a melhor maneira de nos revermos era nos fazer convidar pela Unesco para uma de suas reuniões de ciências sociais.” Cartas de Roger Bastide ao sociólogo Florestan Fernandes, nascido há exatos 100 anos, são provas de uma amizade que rompeu com a ideia do Brasil como colônia intelectual.

 

Paris, 20 de fevereiro de 1952

Meu caro amigo,

Recebi, há uma semana, sua carta de 26 de janeiro, assim como o primeiro pacote enviado por D. Ermelinda, que continha os trabalhos de meus alunos antigos. Fiquei feliz em receber suas boas novas e respondo sua carta.

Como ainda não terminei o estudo e a meditação dos documentos que tenho, como ainda não recebi o segundo e o terceiro pacotes que você me anunciou, nem os relatórios de Renato e de Lucila Hermann, ainda não comecei o estudo do seu projeto. Continue escrevendo, enquanto isso, a primeira parte, sem insistir demais, no entanto, nos fatos históricos, que não interessam diretamente à Unesco, mas somente o que, na história, permite esclarecer melhor a situação presente. Daqui até lá, eu terei, eu acho, terminado minhas reflexões e lhe escreverei a respeito do projeto proposto.

A propósito do cumprimento do trabalho, eu assisti a discussões épicas entre Métraux, que queria deixar a maior liberdade possível aos pesquisadores, e Mme. Myrdal, que quer os relatórios extremamente novos. O primeiro relatório que chegou, o de Wagley da Bahia, teve de sofrer alguns cortes. Acredito, então que seja difícil que se aceite mais de 200 páginas.

Métraux deve ter-lhe escrito que, após discussões, ele acabou por fazer triunfar seu ponto de vista, o de volumes separados. Haverá então um volume especial para São Paulo, nomes que se avizinhariam, e acho que desta forma todo temor que você manifestava de um medalhão [em português, no original] como editor desaparece. O relatório de Oracy Nogueira chegou, assim como o de Thales de Azevedo e mais recentemente o de D. Genisberg.

Pagamento – para a segunda parte, eu não dei nada para D. Ermelinda, porque tenho que pagar também os estatísticos. Pensei então em reservar 1/10 da primeira e da terceira partes para o Secretariado – e 1/10 da segunda e da quarta partes para os estatísticos. É evidente que se o Reitor nos dá o dinheiro prometido, poderíamos dar 1/10 de cada parte ao Secretariado. Mas este dinheiro não chegou ainda e eu preciso pagar os estatísticos.

Penso que Duarte recebeu agora a terceira parte. Eu lhe escrevi para que ele o avise e lhe remeta o dinheiro assim que pegue o cheque. Eu lhe serei agradecido se você mesmo puder acertar com os nossos colaboradores: 1/10 para você, 1/10 Renato, 1/10 L. Hermann, 1/10 Gusberg e 2/10 V. Bocudo, 2/10 Oracy Nogueira. Em seguida, 1/10 a Ermelinda – e finalmente depositar 1/10 na minha conta corrente: Banco Francês e Brasileiro (268, rua 15 de Novembro), C. C. de Roger Bastide. no 31.614. Agradeço antecipadamente.

Pedi também a P. Duarte para ligar novamente para o Reitor para saber se o pagamento da (…) do Governo Paulista tinha sido feito. Ainda não tive resposta para esta carta. Mas acredito que seria bom 1o) telefonar ou ver nosso amigo e colega, Sr. Amora, para saber em que ponto estamos desta questão (eu lhe deixei uma procuração por Cornélio Duarte), 2o) ver com o Duarte, no caso de ainda ser necessário fazer novos procedimentos. Na sua próxima carta, deixe-me a par desta questão.

Recebi uma carta do Diretor da Faculdade – a qual responderei em breve – e uma carta de Ney Costa. Agradeço-lhe também, assim como à Gilda, pelo trabalho dos exames, o que me dá um certo remorso; mas espero devolver-lhes suas horas perdidas quando estiver de volta a São Paulo. Escrevi a Gilda para lhe dizer que o artigo que ele deve dar a Baldus sobre a Divination à Bahia, pelo Museu Paulista, deve ser assinado com dois nomes: o meu e o de Pierre Verger. Espero que isto tenha sido feito.

Aqui, tudo vai bem. No que diz respeito à Unesco, eu dei uma coletiva para a imprensa sobre nossos trabalhos, que interessou imensamente todos os jornalistas presentes – eu fiz um artigo sobre essas questões, que será divulgado em vários jornais – , tenho que fazer na quinta-feira uma reportagem radiofônica ainda sobre esta questão. Vários jornalistas vieram me ver. E não acabou. Questão curso: equipe internacional (2 norte-americanos, 1 inglês, 1 africano do sul, 1 originário do Vietnã, 3 brasileiros entre os quais Maria Isaura e Celisa, que vai aliás voltar para São Paulo no fim do mês, 4 franceses; os negros foram os mais demorados para vir, mas já apareceram 2; enfim Frazier, que está na Unesco, assiste aos cursos e em março nos fará uma conferência sobre a situação racial nos Estados Unidos e as técnicas de pesquisa empregadas para estudá-la).

Por enquanto eu trato de fazer amizade com todos, de criar um clima de confiança recíproca, e principalmente de conhecer nossos estudantes, a fim de poder o ano que vem, através de uma seleção, formar uma equipe de trabalho de 3 ou 4 pessoas, para estudar os negros na França. Questão propaganda brasileira: acredite que não a esqueci; tenho que fazer para o mês que vem um artigo sobre a literatura africana no Brasil (Presença Africana); acabo de entregar uma crônica para o Mercure de France; sonho ainda com 1 ou 2 artigos antes da minha partida. Conto criar uma Sociedade de Estudos Brasileiros, juntamente com o Instituto, se Duarte estiver de acordo neste ponto. Quanto a (…), continuo procurando uma sala para ele, pois ele tem que se mudar, o que me impede de fazer tudo o que eu desejaria por este lado. Métraux também não esquece o Brasil e o próximo roteiro do Jornal dos Americanistas, onde seu nome figurará em uma boa parte, será quase inteiramente consagrado ao índio brasileiro.

Escrevi a G. Teixeira. Espero que ele tenha recebido minha carta. Eu pedia a concessão de uma bolsa para a Faculdade. Gostaria de saber a quantas anda esta questão.

Receba, meu caro amigo, minhas melhores lembranças desta Paris, onde eu espero vê-lo um dia.

Roger Bastide

Paris, 02 de junho de 1957

Estou um pouco espantado com seu longo silêncio. Você não recebeu minhas cartas anteriores? Tive notícias suas por Maria Isaura que me escreveu na sua volta para São Paulo e um pouco mais tarde por P. Duarte. mas não sei se você está pronto para novas pesquisas ou para a redação de seus próximos livros.

Não quero no entanto esperar mais tempo para anunciar-lhe o casamento de minha filha mais nova que será celebrado sábado próximo, com um de seus antigos camaradas de ateliê e de exposição de pintura, Daniel Clesse. É para lhe dizer que estamos neste momento ocupadíssimos e lhe (…).

Acredite que nós não o esquecemos e que aqui se fala sempre de você. Há uns dez dias, eu falava de você com Métraux e ele me dizia que ele tinha, como eu “a saudade” de revê-lo. Nós pensamos que a melhor maneira de nos revermos era nos fazer convidar pela Unesco para uma de suas reuniões de ciências sociais. Penso então que você receberá no decorrer do ano que vem um convite e eu espero que você o aceite. Será para nós todos um imenso prazer reencontrá-lo e passear nas ruas de Paris juntos.

Minha mulher se junta a mim para enviar-lhe assim como para Madame Fernandes nossas lembranças as mais cordiais. TRADUÇÃO Júnia Guimarães Botelho

R. Bastide

 

Cartas gentilmente cedidas pelo Fundo de Arquivo Florestan
Fernandes – Sala de Coleções Especiais da Biblioteca
Comunitária da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Fonte: Revista Cult.

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