O avanço da extrema direita na América Latina também sinaliza a importância de transformar o modelo de exploração capitalista da natureza, que gera enormes lucros privados enquanto socializa os impactos sociais e ambientais negativos.
O século XXI é um século de crise. O colapso econômico capitalista se encaixa com a desigualdade calamitosa, as guerras internacionais e civis impulsionam o desalojamento e a catástrofe humanitária, a xenofobia se infiltra nas leis e o crescente declínio da biodiversidade põe em risco o equilíbrio do planeta. As mudanças climáticas ameaçam agravar todos os outros aspectos dessas crises interligadas, tornando a descarbonização a tarefa mais urgente da nossa lista de tarefas. É difícil imaginar que possamos enfrentar todos os outros problemas socioeconômicos — sem falar na gigantesca tarefa de superar o capitalismo — sem uma ação internacional coordenada.
Uma profunda mudança civilizacional, como Michael Löwy coloca, é necessária para criar uma sociedade verdadeiramente justa e livre dentro do paradigma ecossocialista. Essa transformação não será possível, a menos que garantamos as condições materiais para construir toda e qualquer perspectiva revolucionária. Os ecossocialistas sabem muito bem que apenas um caminho revolucionário pode nos levar para além do sistema capitalista. Mas eles também entendem que outras reformas e conjuntos de mudança precisam angariar apoio em suas formas radicais antes que um cenário pré-revolucionário apareça no horizonte.
Cientistas climáticos concordam que devemos tomar medidas radicais até o final desta década para impedir que as temperaturas globais subam acima do limite de 1,5°C. A esquerda que se organiza em torno de questões ecológicas compartilha um consenso semelhante, mas a situação muda quando consideramos a esquerda de maneira mais ampla. Como escrevo do Brasil, é evidente que as recentes vitórias da extrema direita no continente nos colocam em risco de aprofundarmos ainda mais a emergência climática. O governo Bolsonaro é abertamente anti-ambiental — ele está determinado até mesmo a autorizar a mineração industrial em territórios indígenas.
Quando a natureza é percebida apenas através das lentes dos recursos naturais exploráveis, a biodiversidade se torna facilmente comoditizada. Portanto, não é por acaso que os maiores e mais impactantes movimentos sociais da América Latina estejam ligados à terra e ao território, à proteção ambiental, à soberania alimentar e a uma forte oposição a empresas multinacionais, investimentos estrangeiros e seu histórico de negociações perniciosas com governos de direita — e, algumas vezes, da esquerda moderada. Esses movimentos demonstram que o ecossocialismo deve se basear na práxis. Aqueles que mais sofrem com a exploração do capitalismo sabem muito bem que a plena mercantilização da natureza significa lucros privados e impactos socializados.
Projetos políticos enraizados em ideologias desenvolvimentistas e produtivistas ainda são comuns em círculos socialistas. Muitos da esquerda progressista e até socialista dos países da periferia do capitalismo, ou do Sul global, consideram seu desenvolvimento e o fim da pobreza que afeta milhões de pessoas como antitéticos a uma transição rápida e limpa de energia e ação climática. Os recursos atuais permitem apenas um ou o outro, segundo a lógica deles. No entanto, mesmo que os países desenvolvidos assumam a liderança zerando suas emissões de carbono e ajudando a financiar uma transição energética no Sul, uma verdadeira grande transição depende de fomentar e organizar a vontade de mudança também dos países periféricos. Aqueles que menos têm contribuído para a crise, provavelmente são os que sofrerão os impactos mais profundos. Devido a essa contradição, movimentos sociais, coletivos, sindicatos e partidos políticos às margens do capitalismo são importantes vozes na chamada para a mudança. É fundamental que escutemos.
Construindo o ecossocialismo no Sul e a partir dele
O ecossocialismo, um desenvolvimento recente na história socialista, surgiu pela primeira vez para abordar questões ambientais modernas, articuladas desde a década de 1970. Ele promoveu uma crítica das perspectivas e experiências produtivistas dentro do socialismo, propondo que a visão socialista da abundância priorizasse a qualidade sobre a quantidade. Mais tarde, no que o economista político Kohei Saito chama de segundo estágio do ecossocialismo, a tradição incorporou os fundamentos da ecologia marxista e a crítica de Karl Marx à ruptura metabólica do capitalismo. Essa perspectiva oferece uma análise marxista da maneira profunda com que o atual modo de produção alterou a natureza, identificando explicitamente que é impossível enfrentar a crise ecológica — que é também uma crise da sociedade humana — dentro do sistema capitalista.
Atualmente, o terceiro estágio do ecossocialismo está sendo construído a partir da práxis que lida com as contradições do sistema atual, reivindicando alternativas para começar imediatamente. Nessa conversa, as pessoas desalojadas às margens do sistema têm muito a nos ensinar em termos de valores e práticas de organização. À medida que a extrema direita avança na América Latina, é valioso entender como movimentos camponeses, indígenas e ecossocialistas têm denunciado com ousadia a exploração humana como inseparável da exploração da natureza. No esforço por alternativas radicais, esses grupos marginalizados devem ser protagonistas na construção da práxis ecossocialista.
Em contraste, a via ecocapitalista, também conhecida como soluções de “economia verde”, propõe um falso caminho para a proteção do meio-ambiente. O seu objetivo é inverter alguns dos impactos das alterações climáticas, maximizando simultaneamente os lucros através da criação de novos mercados e da comoditização generalizada na transição ecológica. As instituições encarregadas pela negociação de termos de mitigação das alterações climáticas normalizaram o ecocapitalismo, inclusive promovendo a abordagem de soluções favoráveis ao mercado REDD+ para gestão florestal e comércio de carbono, encorajando a participação de ONGs empresariais e industriais em eventos da ONU sobre alterações climáticas, e apoiando a ideia de que o setor privado deve ser um parceiro crucial — se não o parceiro crucial — na redução das emissões. O resultado tem sido um engatinhar muito lento em direção à descarbonização da energia, o que representa mais uma diversificação das infra-estruturas privadas e públicas de fornecimento de energia do que uma transição propriamente dita.
Isto é particularmente evidente nos países que promovem novos investimentos — tanto públicos como privados — em fontes de energia renováveis, enquanto continuam a explorar combustível sujo em nome do comércio e do crescimento econômico. Por exemplo, em janeiro de 2020, a Alemanha anunciou um plano para eliminar progressivamente o carvão, mas a data final é daqui a 18 anos. A China está aumentando sua capacidade solar e eólica há anos, mas o investimento caiu recentemente devido a cortes nos subsídios públicos. A China também tem investido em centenas de novas centrais de carvão, tanto no país quanto no exterior. Enquanto isso, o setor privado está ansioso por se vender como fornecedor de energia “limpa”, uma variação do que os ativistas anticapitalistas há muito tempo têm criticado sob o termo greenwashing. As elites estão lucrando no mercado das energias renováveis — e espera-se que ele atinja um valor global de 1,5 trilhões de dólares até 2025 — vendendo tecnologia a governos e pessoas físicas.
O ecossocialismo critica as soluções baseadas no mercado, mas também condena o ritmo lento da transição — se é que podemos usar essa palavra — estabelecido pelos governos que ainda priorizam às indústrias tradicionais e sujas como fontes de crescimento do PIB. Isto implica criticar o desenvolvimentismo e o produtivismo como ideologias nacionais. O ecossocialismo despedaça o significado de desenvolvimento para o livrar de suas facetas capitalistas e coloniais e a fim de enriquecer com noções qualitativas (e não meramente quantitativas) de uma boa vida. Também visa eliminar o produtivismo — cuja influência pode limitar o socialismo a uma mudança na propriedade dos meios de produção sem alterar o paradigma de produção — eliminando a obsolescência programada e promovendo o planejamento democrático da produção ao redor das questões de porquê, onde, para quê, quanto e para quem.
Contudo, grande parte do desenvolvimento teórico em torno do ecossocialismo tem se dado entre os intelectuais-ativistas do Norte. Embora existam organizações ecossocialistas em todo o mundo, majoritariamente de esquerda, incluindo a esquerda socialista, o Sul ainda está longe de uma síntese ecossocialista. Mesmo as discussões sobre buen vivir e Pachamama no Equador e na Bolívia devem levar em consideração os limites e a apropriação política de tais conceitos. Os movimentos sociais camponeses e indígenas, cujos valores estão profundamente ligados ao metabolismo da natureza, são bem respeitados e podem ser grandes líderes para a mudança. No entanto, quando se trata da economia, a maior parte da esquerda nos países periféricos continua a contar com a separação entre o homem e a natureza a fim de garantir uma imagem representativa do proletariado urbano, campeão da indústria, e mestre dos recursos naturais locais.
Contudo, a teoria da dependência nos mostra que a percepção da natureza como uma simples fonte de mercadorias contribui para a vulnerabilização dos trabalhadores em lugares como o Brasil e a Bolívia. Pior ainda, movimentos que resistem a grandes projetos sócio-económicos destrutivos liderados por governos de esquerda — como é o caso da barragem hidroeléctrica de Belo Monte na Amazônia brasileira — são vilanizados pelos partidos de esquerda e sindicatos que promovem uma perspectiva produtivista de progresso e criação de emprego. O carvão e o petróleo continuam a ser elementos importantes nas representações esquerdistas de desenvolvimento social e econômico, o que não surpreende quando o subdesenvolvimento ainda priva milhões de pessoas da classe trabalhadora de eletricidade, saneamento, e outras infraestruturas e serviços básicos no mundo todo.
Embora o desenvolvimentismo e o produtivismo continuem a ser a norma, os impactos da crise climática forçam os desprovidos a confrontar a forma como o sistema econômico global tem pressionado a natureza a um nível sem precedentes. Sofrendo a maior parte das consequências negativas, as classes trabalhadoras à margem do capitalismo são as que têm mais a perder com o colapso ecológico — e as que mais têm a ganhar ao conduzirem o mundo em direção a uma postura mais ousada. A esquerda deve prestar atenção e dar espaço suficiente aos grupos que há muito denunciam o desastre iminente. Certamente, não pode haver luta socialista sem luta indígena.
Até o momento, a maioria dos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento têm tentado alcançar os países desenvolvidos através das regras do sistema capitalista. Isto tem produzido uma relação de dependência contínua. Um programa de desenvolvimento radicalmente diferente, orientado para o ecossocialismo, centrado na qualidade de vida, no pleno emprego, em atividades livres de carbono e na autonomia econômica, pode salvar estes países das margens e constituir um exemplo para os grandes atores que continuam a colocar os seus objectivos financeiros contra o futuro do planeta. O desafio para a terceira fase do ecossocialismo é liderar o caminho através do desenvolvimento através da descarbonização, reforçando ao mesmo tempo o setor público e as organizações da classe trabalhadora para criar as bases materiais para derrubar o sistema capitalista de uma vez por todas.
Metabolismo do século XXI
Uma discussão chave do ecossocialismo envolve o conceito de ruptura metabólica de Marx, o qual demonstra a insustentabilidade da lógica inerente no modo de produção capitalista. O verdadeiro “reino da liberdade”, argumentam os ecossocialistas, deve superar esta dinâmica por meio da regulação racional do metabolismo da natureza. É impossível compreender totalmente os impactos do capitalismo no ecossistema global sem uma profunda consideração da extração e saque colonial.
Tomando o Brasil como exemplo, a ascensão da extrema direita, encarnada na presidência de Jair Bolsonaro, está claramente enredada no agronegócio e na mineração industrial. Assim que tomou posse, Bolsonaro reduziu o orçamento para a mitigação da mudança climática em 95%. O Ministério do Meio Ambiente é chefiado por Ricardo Salles, que é condenado por fraude ambiental. O desmatamento está em ascensão e os funcionários ambientais batalham para fazer seu trabalho sem os recursos adequados. Quando milhares de barris de petróleo de origem desconhecida contaminaram as praias de 11 estados em 2019, o governo brasileiro negligenciou largamente o desastre. Bolsonaro tentou até culpar um barco do Greenpeace pelo derramamento, alegando sabotagem. O governo só agiu quando a maior parte dos danos já havia sido feita, deixando os esforços de resposta para os voluntários locais que arriscaram sua própria saúde removendo o petróleo e resgatando animais. Também é sabido que a descoberta brasileira de suas ricas reservas de petróleo no pré-sal, em 2006, gerou pressões geopolíticas, especialmente em torno da Petrobras.
Assim como muitos outros países em desenvolvimento e subdesenvolvidos, o Brasil experimenta uma dinâmica de dependência. A extração de recursos é responsável por uma grande parte da economia e atrai superpotências que visam lucrar com produtos primários baratos, da agricultura ao petróleo. Evo Morales, na Bolívia, Nicolás Maduro, na Venezuela, e até mesmo o governo anterior do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil tiveram abordagens contraditórias frente às questões ambientais, em busca do crescimento econômico a partir do extrativismo, vinculando a redistribuição social à entrada de receitas de commodities. Suas perspectivas, comuns a toda a maré rosa, flutuaram entre um maior respeito pela natureza em comparação com os governos de direita e um foco desequilibrado em uma ideia de desenvolvimento sustentável que tratou os custos ambientais como uma reflexão tardia relativa a grandes projetos e produção econômica. Este tipo de negociação com interesses extrativistas permite a manutenção das elites nacionais tradicionais em uma posição confortável de poder econômico, ao mesmo tempo que compromete a autonomia nacional devido à dependência excessiva de exportações de commodities.
Tais países estão posicionados de forma única quando se trata de resistência e de construção de alternativas radicais. Na maioria dos casos, se não por sua dependência da extração de recursos que alimentam as superpotências econômicas, esses países contribuiriam pouco para a mudança climática. A dependência — que é a raiz de sua contribuição para a crise climática — impede o desenvolvimento real, afastado das práticas de degradação do meio ambiente, que constrói infraestruturas resistentes e adaptadas para a mitigação da mudança climática. Em um país tão desigual quanto o Brasil, as cidades não são feitas para o povo, mas divididas por classe e pelos interesses de cada elite local. O resultado são muitos carros; uma infraestrutura de transporte público precária e com passagens caras; e tanto concreto que a chuva inevitavelmente leva a enchentes, doenças e mortes. A “normalidade” significa que enquanto a Vale S.A. puder extrair minério de ferro, a economia está relativamente segura e os impactos sociais e ambientais — incluindo estouros de barragens que provocam inundações de resíduos de mineração — não passam de externalidades esperadas.
Até o momento, a esquerda nestes países adotou a abordagem errada para superar a dependência ao pensar que seria possível desafiar o capitalismo sem alterar sua lógica de produção. Alguns deles intensificaram a extração para aproveitar os preços das mercadorias, mas não conseguiram obter os ganhos necessários na capacidade industrial interna. Outros investiram na capacidade interna, mas ainda sofreram algumas consequências desastrosas da contínua dependência da extração: o enriquecimento contínuo das velhas elites, a superespecialização que mantém a dependência e as relações geopolíticas conflitantes, e a perpetuação da ruptura metabólica, por meio da qual o uso desregulado da natureza leva a uma série de impactos de curto, médio e longo prazo.
Uma abordagem diferente para o desenvolvimento — centrada na autonomia e na criação de condições ecológicas favoráveis para uma maior organização dos interesses da classe trabalhadora — poderia ajudar a superar a dependência e, ao mesmo tempo, liderar o caminho para uma transição ecológica global. Esta transição, então, poderia ter o poder de reconciliar e unir todas as pessoas oprimidas em torno do paradigma ecossocialista.
Decarbonizar e organizar!
A ecologia é um ponto de convergência fundamental para os oprimidos ao redor do mundo. Os impactos ambientais recaem de forma desproporcional sobre eles. As mulheres são mais propensas a assumir encargos extras de reprodução social após desastres ambientais. As cidades projetadas em torno do capital carecem de infraestrutura em suas periferias e são muito racializadas. As conexões ecológicas promovem não apenas a solidariedade, mas sínteses profundas entre as lutas.
A bandeira da soberania alimentar, por exemplo, conecta trabalhadores sem-terra a profissionais da saúde e ativistas da libertação animal. Ativistas climáticos, políticos e todos os sindicatos interessados em pleno emprego, compartilham de uma preocupação com mudanças radicais no sistema energético. Os ecossocialistas compreendem o poder de organizar a classe trabalhadora de forma metabólica — isto é, através do entendimento de que se classe e opressão são inseparáveis das condições ecológicas, as lutas devem agir conjuntamente. Ao invés de lutas diferentes marchando lado a lado, o horizonte exige conexões em torno dos fundamentos ecológicos das condições materiais para a sobrevivência — e até mesmo para a revolução. Não podemos mais separar a organização do trabalho das lutas feministas, antirracistas, LGBTQI+, libertação animal, abolição prisional, lutas anti-imperialistas e de autodeterminação dos povos. A visão ecológica metabólica mostra que para além de terem interesses semelhantes, essas lutas compartilham as mesmas raízes.
Conforme as preocupações ambientais têm se tornado cada vez mais urgentes, alguns setores da esquerda finalmente compreenderam sua importância. Devemos ser estratégicos. Uma maior sensibilidade às questões ambientais apresenta uma oportunidade de politização para que possamos, ao mesmo tempo, rejeitar propostas capitalistas “verdes” inerentemente falhas e aprender a construir as condições para um horizonte radical.
Em certo nível, isto exige que os ecossocialistas considerem a reforma e a revolução. O ecossocialismo é uma perspectiva revolucionária, mas deve estar consciente das mediações necessárias para garantir as condições ecológicas para uma revolução. A urgência da mudança climática exige a descarbonização ainda sob o capitalismo. Isto não significa, no entanto, aceitar tal plano em termos capitalistas. A lógica deve ser de descarbonizar rapidamente, com foco no sistema público, combatendo a privatização a todo custo, e fortalecendo os movimentos e organizações populares. Um modo de produção descarbonizado é necessário para garantir que quando os trabalhadores estiverem prontos para derrubar as estruturas capitalistas, ainda haja um planeta saudável no qual se possa construir o socialismo.
É por isso que projetos que visam superar a economia do carbono, como o Green New Deal, propõem a transição de uma economia baseada no carbono para as energias renováveis. Esta transição requer mudanças em muitas áreas, mas não é o que os socialistas chamam de um programa de transição, muito menos um esforço revolucionário socialista. A descarbonização é tanto uma necessidade imediata quanto um pré-requisito material para qualquer programa de transição e para a própria perspectiva de organização em prol da abolição da propriedade privada. Para ter sucesso, os esforços de descarbonização precisam ser altamente coordenados, mas de baixo para cima. A terceira etapa do ecossocialismo exige a mobilização de setores inteiros da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, o crescimento da esquerda pela atração de pessoas preocupadas com a viabilidade da vida no próximo século.
Naturalmente, os capitalistas verdes também têm tentado apresentar sua própria versão da descarbonização. A visão deles gira em torno da propriedade privada e das margens de lucro, permite mais extrativismo, leva um ritmo lento e demonstra um otimismo perigoso em relação a tecnologias não desenvolvidas que podem futuramente resolver o problema de carbono sem alterar a produção. A menos que assuntos como poluição e perda de biodiversidade possam ser comoditizados, estas abordagens negligenciam outros elementos da crise ecológica além do carbono. A tarefa ecossocialista diante do Green New Deal é fazer dessa proposta — seus objetivos, velocidade de implementação, envolvimento dos trabalhadores e seus interesses — o mais radical possível. Isto também exige uma perspectiva internacionalista que considere a transferência de recursos financeiros — como um incentivo, mas também como uma espécie de reparação — como apoio para os países colonizados e afetados na transição energética. Este processo também deve assegurar a autonomia local, abrindo espaço para as contribuições políticas do Sul como garantia de que o sistema mudará de fato.
O desafio está em como levar toda a esquerda a este entendimento — e não apenas em termos de argumentos convincentes, mas como práxis. A Petrobras oferece um exemplo importante. É primordial que as reservas de petróleo nas camadas do pré-sal — encontradas a milhares de metros de profundidade no subsolo oceânico, cuja extração é caríssima — permaneçam, dentro do possível, intocadas. A pressão estrangeira do setor privado visa enfraquecer o papel do Estado na Petrobras, e isto tem afetado os trabalhadores da empresa, bem como os preços ao consumidor de petróleo e gás. Uma perspectiva comum, compartilhada pelo sindicato da Petrobras, defende a estatização completa da empresa para que as reservas sustentem a soberania nacional — e não os interesses imperialistas — garantindo ao Brasil 100 anos de autonomia energética. De uma perspectiva desenvolvimentista padrão sem qualquer consideração ecológica, isto soa como um argumento dos sonhos para a soberania dos trabalhadores. É, porém, irrealista, pois coloca o mundo inteiro em perigo de uma catástrofe climática acelerada. Isto demonstra a importância de fomentar o ecossocialismo no Brasil e a urgência de desenvolver um programa de descarbonização.
A privatização levaria, evidentemente, a um extrativismo intenso sem nenhuma recompensa para os trabalhadores ou para o país. Portanto, deve ser combatida em todas as frentes. No entanto, produzir seu próprio “acordo” de descarbonização também é importante para países como o Brasil, para que os sindicatos de trabalhadores das indústrias baseadas no carbono possam se envolver. Somente uma Petrobras totalmente estatizada e controlada pelos trabalhadores será capaz de postular os passos necessários para uma transição justa baseada em: uma moratória sobre novas explorações; rápida diversificação das atividades da empresa em energias renováveis; formação, remuneração e garantia de empregos.
Isto não é inteiramente inovador — a Equinor, estatal petrolífera norueguesa, assumiu o compromisso de aproximar as emissões do país do zero até 2050. A Petrobras investiu em energias renováveis no passado como uma forma de “preparar a empresa para um futuro de economia de baixo carbono”, mas atualmente está desinvestindo nesses setores, inclusive vendendo suas usinas eólicas no início de 2020.
Os interesses privados na camada pré-sal e as intenções de privatização do governo têm feito a Petrobras recuar. Um programa radical de descarbonização que inclua a estatal, com novas prioridades encabeçadas por trabalhadores sindicalizados, teria o potencial de não apenas recuperar os planos anteriores da Petrobras em matéria de energias renováveis, como também de ir ainda mais além do que as metas da Equinor. Esta mudança também daria poder a outras petrolíferas estatais da região e poderia ajudar a redirecionar o futuro da Pemex do México, entre outras.
Como argumentam os autores do livro Um planeta a conquista: a urgência de um Green new Deal (publicado em 2019 pela Verso Books e está sendo traduzido pela Autonomia Literária), uma transição justa depende do controle público dos recursos energéticos, e só será justa se for centrada na melhoria da vida das pessoas. Além de evitar o colapso do clima, este tipo de acordo descarbonizador contribui para o horizonte ecossocialista: não pode haver apenas transição energética sem organização, e os frutos desta organização podem caminhar para a superação do capitalismo. Reestruturar a economia longe do carbono e, ao mesmo, tempo centralizar a classe trabalhadora, possibilita sonhar com cidades e moradias eficientes, melhores meios de transporte, cuidados de saúde preventiva, um sistema agrícola construído sobre a soberania alimentar, uma indústria sem obsolescência programada e mais tempo para lazer e descanso.
Não é possível eliminar o sistema capitalista por meio de um decreto ou simplesmente do voto. Para assegurar uma sociedade pós-capitalista ecológica e politicamente sustentável, devemos construir as condições para que o futuro seja possível e duradouro. Uma alternativa revolucionária viável toma as condições que pode construir no capitalismo, preserva os ganhos, muda o que é necessário e depois transcende as barreiras que o capitalismo impôs à emancipação. Em suma, para abolir o capitalismo de verdade, devemos torná-lo obsoleto. Uma sociedade cujo modo de produção atende às necessidades e à qualidade de vida dos povos sem exploração ou destruição torna o capitalismo ultrapassado, irrelevante e indesejável.
A organização afastada do carbono também pode ser um passo valioso para uma organização ampla e internacional afastada do capital. Uma transição energética justa no Sul nos impulsionará nessa direção, atingindo o capitalismo na raiz da extração, exploração e colonização — nenhuma das quais tem lugar numa sociedade ecossocialista. Uma ação coordenada a partir das margens pode ser exatamente o que precisamos.
Sabrina Fernandes é doutora em sociologia e militante ecossocialista. Escreve e edita para a Jacobin em inglês e é consultora editorial da Jacobin Brasil. Atualmente faz pós-doutorado no Grupo Internacional de Pesquisa sobre Autoritarismo e Contra-Estratégias da Fundação Rosa Luxemburgo e Universidade de Brasília. Criadora de conteúdo do canal de esquerda radical do YouTube Tese Onze.
Original publicado no NACLA Report. Tradução em parceria com a Jacobin Brasil | Foto: Pilar Olivares, Reuters.