Por Gabriel Silva

Os EUA são uma democracia racial?

O racismo brasileiro é fortemente marcado por processos de inclusão formal e exclusão real dos negros. No pós-abolição, não foram utilizados tão amplamente processos de segregação formal como as leis Jim Crow nos EUA ou o Apartheid na África do Sul. Ainda assim, o Brasil conseguiu manter uma segregação efetiva de sua população negra tão ou mais contundente do que a desses dois países. A segregação real do negro no acesso a trabalho, moradia, terra, educação e saúde dispensou a necessidade de uma superestrutura formal explicita de segregação, mas foi obtida com uma política de embranquecimento do Estado e da classe patronal.

A cientista social e minha amiga Thaís Fernandes mostrou como esse processo se deu no caso da educação, recentemente em seu artigo “A escola pública no Brasil: a inclusão formal e exclusão material do negro na educação brasileira”. Ela mostra como a segregação foi estabelecida com a exclusão material do negro e a ideologia do embranquecimento cultural que serviam de base das políticas de Estado. Essa arquitetura institucional do racismo das classes dominantes e do Estado brasileiro veio a desenvolver a ideologia da “democracia racial”, que sustenta que a existência da inclusão formal, operada por um discurso de neutralidade racial, faria do Brasil um país sem racismo.

No livro A nova segregação: racismo e encarceramento em massa na era da neutralidade racial (Boitempo), Michelle Alexander mostra como o fim das leis de segregação na década de 60, conquistado pelo movimento dos direitos civis, fez os EUA entrarem numa era em que as políticas de Estado passaram a adotar uma linguagem racialmente neutra, mas suas práticas permaneceram racistas. Ela mostra que as taxas de pobreza e desemprego dos negros nos EUA são hoje, na realidade, piores do que em 68, no auge do movimento negro por direitos civis. Alexander sustenta que: “O racismo é altamente adaptável, as formas de hierarquia racial evoluem e se modificam na mesma medida em que são contestadas. Em um processo de preservação através da transformação. Por vezes essas mudanças institucionais deixam o que se entendia pela dominação para trás de forma que parecem morrer, mas renascem sob novas formas.”

Assim ela argumenta que a criminalização do negro como justificativa do massacre policial e do encarceramento em massa promovido pelo Estado contra essa população foi o elemento encontrado para manter as massas negras segregadas. Dessa forma, os negros permaneceram uma sub casta super explorada, quando não descartável, até os dias atuais apesar do fim formal da segregação. A verdade é que mais adultos afro-americanos estão sob o controle correcional hoje – na prisão, em liberdade condicional ou assistida – do que estavam escravizados em 1850. Podemos dizer que tal diagnóstico se aplica parcialmente ao Brasil e, do ponto de vista ideológico, os EUA passou por um processo de brasilianização com o fim das leis Jim Crow. Uma ideologia institucional parecida com a nossa “democracia racial” foi adotada, onde a inclusão formal do negro convive com a criminalização e exclusão material das massas negras.

Citando novamente Alexander: “Pode-se argumentar que o paralelo mais importante entre o encarceramento em massa e o Jim Crow é que ambos serviram para definir o significado de castas nos Estados Unidos. De fato, uma função primária de qualquer sistema de castas raciais é definir o significado de raça no seu tempo. A escravidão definiu o que significava ser negro (um escravo), e o Jim Crow definiu o que significava ser negro (um cidadão de segunda classe). Hoje, o encarceramento em massa define o significado da negritude nos Estados Unidos: pessoas negras, especialmente os homens, são criminosos. Isso é o que significa ser negro.”

Na reflexão de Alexander também é apresento o conceito de suborno racial, ela descreve como, para apaziguar as revoltas negras da década de 60, as classes dominantes estadunidenses passaram a adotar políticas de cotas de inclusão de negros e minorias étnicas em instituições de elite. Assim, sem modificações substanciais nas estruturas econômicas e nas hierarquias sociais ou raciais, criaram uma pequena classe média negra. Através de figuras que alcançaram o ápice do poder e dinheiro como Barack Obama, Oprah Winfrey, Condoleezza Rice e Beyoncé, fizeram parecer pra alguns o anúncio do início de uma era “pós-racial” com uma sociedade que já não utiliza um discurso explicito de segregação racial. Esses tempos “pós raciais” fazem com que até alguém que tem uma base social explícita relacionada a organizações supremacistas brancas como Donald Trump sinta necessidade de vir a público afirmar que “não é racista”. O discurso racialmente neutro da era “pós racial” apenas levou a uma ideologia semelhante a da “democracia racial” brasileira, onde 90% da população admite que o racismo existe mas 97% afirma não ser racista. Dessa forma, a política de cotas e os ganhos simbólicos trazidos pela criação de elites negras decorativas permitiu que as classes dominantes sustentassem um discurso de progresso racial, ao mesmo tempo que fortalecem as bases econômicas dos abismos raciais para as massas.

Assim, uma onda poderosa de criminalização e repressão se abateu sobre as comunidades negras. As políticas de guerra às drogas e encarceramento em massa nos EUA provocaram um salto de aproximadamente 200.000 presos em 1970 para 2,1 milhões em 2020. O rótulo de criminoso passou a ser o novo pretexto legítimo para preterir o negro no acesso ao trabalho, retirar seu direito ao voto, impedir seu direito a moradia e a outros direitos sociais. Alexander relaciona a política de cotas e o fomento a classe média negra como um suborno racial que permitiu que o encarceramento em massa e a continuidade da segregação racial não fossem questionados. Ao contrário, foi criado um consenso político em torno de uma suposta “melhora” nas relações raciais, mesmo que essa melhora não exista para a maioria, que ao contrário, está mais distante ainda de superar o racismo.

No Brasil, fenômeno semelhante acontece, a política de cotas começou a ser implementada em 2001 quando o estado do Rio de Janeiro passou a reservar 40% das vagas da UERJ a autodeclarados pretos ou pardos, mas foi em 2012 que foi aprovada a lei de cotas que reservou vagas com critérios econômicos e raciais em universidade federais de todo país. Paralelamente, com a redemocratização se inicia a política de encarceramento em massa no Brasil, de menos de 90.000 presos no fim da ditadura em 89, a população carcerária saltou pros atuais 746.000 presos. A política de cotas vestiu uma máscara de progresso racial no Brasil ao mesmo tempo que se aprofundava a criminalização e militarização dos territórios negros e a exclusão real das massas negras.

É óbvio que nem eu e muito menos Michelle Alexander somos contra as cotas raciais, apenas enfatizamos como, apesar de serem uma medida muito importante, são incapazes sozinhas de levar à superação do racismo e, pelo contrário, as ilusões propagandeadas nesse sentido tem sido um meio eficiente de fortalecê-lo. A política de cotas tem impactos econômicos extremamente pequenos para ajudar a efetiva superação do racismo se comparados com os imensos retrocessos causados pelas políticas de guerra às drogas e de encarceramento em massa implementadas simultaneamente.

O estigma racial da criminalidade negra coloca negros e trabalhadores contra si mesmos, destrói redes de apoio mútuo e cria uma barreira entre a luta pelo progresso negro e a luta em solidariedade aos setores mais marginalizados, o silencio a respeito do novo sistema de segregação racial é profundo mesmo entre muitas das pessoas mais afetadas por ele. É preciso quebrar esse silêncio e enraizar nossa luta nas massas negras mais oprimidas, se solidarizando com as vítimas da violência policial racista e do sistema prisional. Precisamos superar o punitivismo dentro da esquerda e desmantelar com nossas lutas o encarceramento em massa para avançarmos na luta contra o racismo.

*Gabriel Silva é militante do Quilombo Invisível e da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio.

 

Referências


ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2017.

FERNANDES, Thais. A escola pública no Brasil: a inclusão formal e exclusão material do negro na educação brasileira. Disponível em:  https://quilomboinvisivel.com/2020/09/13/a-escola-publica-no-brasil-inclusao-institucional-e-exclusao-material-do-negro-na-educacao-brasileira/

SILVA, Gabriel. Dilemas para uma estratégia de luta antirracista: https://quilomboinvisivel.com/2021/07/10/dilemas-para-uma-estrategia-de-luta-anti-racista/

Trump divulga vídeo com lema da Supremacia Branca: https://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2020/06/28/opiniao-trump-divulga-video-com-lema-da-supremacia-branca.htm

‘Não sou racista’, diz Trump, após ofensa a África e Haiti: https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/2018/01/internacional/606538-nao-sou-racista–diz-trump-apos-ofensa-a-africa-e-haiti.html

“90% dos brasileiros dizem que há racismo no País, mas 97% não se considera racista, aponta levantamento”: https://ceert.org.br/noticias/dados-estatisticas/43649/90-dos-brasileiros-dizem-que-ha-racismo-no-pais-mas-97-nao-se-considera-racista-aponta-levantamento

 

Fonte: A Terra é Redonda.

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