O presidente do Congresso Nacional Africano, Cyril Ramaphosa, senta-se à mesa com membros do Comitê Executivo Nacional em uma reunião especial em 6 de junho de 2024, em Boksburg, África do Sul. (Per-Anders Pettersson / Getty Images).

Por Niall Reddy | Tradução: Priscilla Marques

Após perder a maioria parlamentar pela primeira vez, o Congresso Nacional Africano da África do Sul está se esforçando para formar um governo de coalizão – e suas opções são sombrias.

 

A política durante o apartheid tinha uma certa simplicidade linear. Sempre era bastante nítido quem era o principal inimigo. As coisas se embaralharam com a democratização. Mas uma certa medida logo foi restabelecida — pelo menos para a esquerda outsider. Um bloco hegemônico neoliberal se formou no cume do poder, unindo as antigas elites empresariais brancas a uma emergente “burguesia negra corporativa”, como disse Roger Southall. As linhas de batalha estavam nítidas mais uma vez.

Essa era terminou em algum momento por volta de 2014, durante o governo de Jacob Zuma. Alimentada pela economia corporativa, uma nova elite rival fez sentir sua presença plena nesse período. Ela assumiu o comando de um conjunto mais amplo de forças nascidas das “economias informais” do estado de patronagem do Congresso Nacional Africano (ANC) e estiveram comprometidas com uma forma mais robusta de redistribuição racial, sem pretensões progressistas.

Com a derrota de Zuma no congresso nacional do ANC em 2017, as forças da “transformação econômica radical” (RET) foram brevemente repelidas. Mas elas ressurgiram com força total no mês passado, quando o novo partido uMkhonto weSizwe (MK) de Zuma ganhou 14,6% dos votos nas eleições nacionais, negando ao ANC sua maioria eleitoral pela primeira vez desde a democracia. Combinados com os Combatentes pela Liberdade Econômica (EFF), partidos dedicados ao RET ocuparam cerca de um quarto das cadeiras no novo parlamento.

O campo político agora é dominado por dois blocos opostos — o liberal (Aliança Democrática [DA] e alguns partidos menores) e o autoritário-cleptocrático (EFF e MK), com o ANC dividido entre os dois e a esquerda infelizmente fora de cena.

Muitos parecem negar essas realidades e querem se apegar às binaridades fáceis de antes.

À esquerda, duas respostas ao 29 de maio têm sido predominantes. Primeiro, uma corrida às falsas equivalências: somos lembrados da verdade primordial de que tanto os liberais quanto os cleptocratas são “ruins”, mas a comparação não vai além disso. Segundo, denúncia seletiva: os defeitos e malevolências de um lado são minuciosamente analisados, enquanto o outro é ignorado.

Isso não vai resolver. Ser forçado a navegar entre duas escolhas terríveis não é o mundo que queremos, mas é o mundo em que estamos. Ignorar e desejar que esses dilemas desapareçam é abdicar do nosso dever estratégico e tornar mais provável que acabemos com o pior dos dois.

Para decifrar o “significado” dos blocos contenciosos, não basta apenas colocá-los no espectro ideológico e invocar seus análogos históricos. Precisamos situá-los em nossa conjuntura concreta e traçar como cada um irá remodelar o terreno político-econômico de maneiras que ou promovam ou impeçam a construção de uma alternativa progressista.

Então, o que as diferentes combinações de coalizões significam para a África do Sul e para a classe trabalhadora? Muitos na esquerda pensam que um acordo ANC-DA prenuncia uma guinada gigante mais profunda no neoliberalismo. Eles preveem continuidade na “prudência fiscal” acompanhada de um retrocesso das plataformas de bem-estar que o ANC conseguiu implementar. Não propenso à falsas equivalências, Luke Sinwell descreveu isso como a “maior ameaça de todas para aqueles que buscam reparações históricas.”

Implícito em muitos desses relatos parece estar a suposição de que a DA mantém toda a alavancagem nas negociações de coalizão, dando-lhe o poder de ditar a agenda legislativa de qualquer novo governo. Isso está errado, pois, como todos sabem, a DA não é a única escolha do ANC. O EFF e o MK detêm assentos parlamentares suficientes para aproximar ou ultrapassar o ANC dos 50%.

“Como todos sabem, a DA não é a única escolha do ANC. O EFF e o MK possuem assentos parlamentares suficientes para levar o ANC perto ou acima de 50%.”

Os líderes da DA rotulam uma aliança do ANC com qualquer um desses partidos como uma “coalizão do juízo final”, e isso não deve ser visto apenas como mera retórica eleitoral. Sempre predispostos a contos de colapso social tingidos de swart gevaar, é provável que muitos no partido acreditem genuinamente que tal coalizão colocará o país em um caminho de Zanuzação. Infelizmente, essas preocupações não são inteiramente sem mérito, por mais odiosos que sejam seus pressupostos.

Os mesmos temores são sentidos com a mesma intensidade nos escritórios executivos de Sandton, e isso terá um grande impacto no processo de negociação. O telefone da presidente do conselho federal da DA, Helen Zille, deve ter tocado incessantemente nas últimas semanas, à medida que CEOs desesperados a pressionam para deixar de lado a ideologia e reforçar um pacto de estabilidade com o presidente Cyril Ramaphosa.

Por isso, a DA tem repetidamente dito que fará “qualquer coisa” para impedir que os cleptocratas voltem ao poder — não exatamente a linguagem de um partido que detém todas as cartas. Naturalmente, haverá dissensão nas fileiras, com alguns pressionando por termos mais duros ou tentando sabotar o acordo por completo. Mas o fato é que, à medida que as negociações começam, a vantagem da DA está longe de ser esmagadora.

Não podemos prever exatamente o que um acordo ANC-DA — seja como coalizão ou “confiança e apoio” — implicará. Mas parece altamente improvável que envolva a revogação de qualquer uma das principais medidas redistributivas do ANC — o salário mínimo, a Black Economic Empowerment ou o National Health Insurance (sobre o Basic Income Grant, ambos os partidos estão nominalmente alinhados). Um movimento nessa direção seria um suicídio político para Ramaphosa e, por sua vez, para o pacto centrista.

Do ponto de vista das políticas, o resultado mais provável de um acordo DA-ANC é uma continuidade direta. Esse parece ser o objetivo explícito tanto dos principais líderes da DA, quanto de seus apoiadores corporativos.

No curto prazo, a continuidade não é totalmente ruim, dado que, pelo menos em certos aspectos, estamos atualmente em uma trajetória de recuperação lenta das profundezas em que Zuma nos inseriu. Cinco anos de fôlego para que as reformas meticulosas de Ramaphosa ganhem terreno podem permitir que instituições públicas-chave saiam da UTI.

Pode até ter um ou dois aspectos positivos, com esperanças de progresso na reforma do setor público. A história mostra que partidos dominantes são mais propensos a abrir mão de poderes de nomeação quando ameaçados, de que seus oponentes possam usar das mesmas armas contra eles — essa é a realidade que o ANC agora enfrenta, à medida que a administração subnacional escapa de seu controle.

No médio e longo prazo, entretanto, a continuidade é inequivocamente ruim. Muitos dos tratamentos que estão sendo aplicados para evitar o colapso causarão grandes complicações no futuro. A privatização pode fazer os trens voltarem a funcionar e manter as luzes acesas a curto prazo. A longo prazo, entregará o poder infraestrutural às grandes empresas e minará a capacidade do estado de imaginar e implementar transformação estrutural e adaptação climática.

“Se o registro histórico mostra alguma coisa,é que a austeridade contínua não resolverá a crise da dívida e empurrará as pessoas mais profundamente para os braços dos manipuladores.”

Se o registro histórico mostra alguma coisa, é que a austeridade contínua não resolverá a crise da dívida e empurrará as pessoas mais profundamente para os braços dos manipuladores. As políticas neoliberais são a causa raiz da polarização no país e não serão a solução.

Um pacto com a DA pode trazer um retorno à tendência pré-Zuma, mas essa tendência já era de crise.

Então, esse cenário é a “maior ameaça de todas para aqueles que buscam reparações históricas”? Categoricamente não. Há, infelizmente, um cenário muito pior que é possível caso o segundo dos blocos contendentes — os cleptocratas — que ganham ascendência.

Antes de expor esse cenário, devemos enfatizar que é apenas uma possibilidade mais alarmante, mas não necessariamente mais provável, de como as coisas podem vir a se desenrolar. Certamente existem alguns mundos em que uma aliança ANC-EFF termina novamente em continuidade, talvez até mesmo alguns nos quais leva a rupturas progressistas (muito menos se o MK for o ator principal). Ler os sinais sempre é complicado quando o EFF está envolvido, já que muito do que ocorre nesse partido depende das preferências e inclinações de um indivíduo.

Mas, ao mesmo tempo, seria um erro personalizar excessivamente as dinâmicas dentro do EFF. A tendência do partido para a corrupção não é simplesmente um reflexo da própria predileção do líder do partido, Julius Malema, que embaça as fronteiras entre as finanças públicas e pessoais. É um reflexo da imbricação histórica de sua organização e seus antecedentes nas economias informais do estado-partido do ANC. O clientelismo não é uma escolha política para o EFF; é uma realidade estrutural, na qual o poder e a legitimidade da liderança — incluindo Malema — se sustentam.

O mesmo se aplica, ainda mais fortemente, aos seus irmãos em guerra no MK.

Quando Malema disse que o EFF e o MK são “parentes”, ele falou mais verdades do que normalmente costuma fazer. Ainda assim, o observador externo pode ser perdoado por alguma confusão — apesar da persistência de alguns na mídia em tentar associar o MK com a Esquerda, essa é uma formação política flagrantemente de direita, chauvinista, etnocêntrica, dedicada a reviver a autoridade feudal.

O EFF é uma criatura muito mais complexa. No papel, ele se inspira mais em Marx do que em Mangosuthu Buthelezi. Em suas fileiras há progressistas genuínos, comprometidos com a democracia no mundo, mesmo que estejam falhando em praticá-la em casa.

“Apesar da persistência de alguns na mídia em tentar associar o MK à Esquerda, essa é uma formação política flagrantemente de direita, chauvinista, etnocêntrica, dedicada a reviver a autoridade feudal.”

Mas na realidade prática, como afirma Malema, os dois estão mais alinhados do que separados, porque são governados pelas mesmas realidades estruturais do clientelismo. A ideologia tende a ficar em segundo plano diante das forças materiais que lubrificam os músculos do poder dentro de suas respectivas organizações e os vinculam à sua base.

Isso significa que o compromisso com a corrupção provavelmente será a agenda predominante para essas formações. Isso pode sugerir uma maneira de contê-las. Certamente existe um cenário no qual o EFF cede a maior parte de sua agenda política em troca de acesso a recursos.

No entanto, caso as forças de RET voltem a controlar o ANC — um resultado mais provável com uma coalizão com um partido cleptocrata — poderíamos muito bem ter um resultado muito mais grave, um retorno aos “anos incríveis” de Zuma, como sua filha colocou.

É justo que a esquerda trate as ameaças sobre a “confiança dos investidores” com algum ceticismo, porque os líderes empresariais tendem a usá-las de forma sutil até mesmo quando questões menores estão em jogo. Este não seria um desses momentos. Um pleno revival da agenda de captura do estado poderia empurrar os investimentos para a beira do precipício.

A partir daí, dois resultados são os mais prováveis. Um é que a coalizão ANC-EFF-MK será trazida à razão pelas realidades do “poder estrutural” do capital. Enfrentando essa calamidade, eles podem recuar, nomeando ministros pró-mercado e tentar conter ou pelo menos centralizar o clientelismo. Voltaremos assim ao status quo anterior — com “fundamentos” neoliberais e corrupção contida. Alternativamente, as forças de RET podem ser depostas pelos próprios vitimados pela crise econômica, usando o voto ou a força.

Este é o modo normal como as coisas funcionam sob o capitalismo. A política opera dentro dos limites estabelecidos por aqueles que têm poder de veto sobre o investimento.

Mas ocasionalmente as regras falham em se aplicar. O poder estrutural é indireto. Em última análise, ele depende de forças políticas não subordinadas à classe de investidores para ser efetivado. E, às vezes, essas forças não vão seguir o roteiro.

Se RET não puder ser forçado a obedecer aos “espíritos animais” dos investidores, então a única maneira seria essa brecha se alargar. A economia vai sentir o impacto e os cleptocratas eventualmente responderão com expropriação, esperando usurpar a prerrogativa do capital sobre o investimento e conter o problema em sua fonte. Eles não o farão para colocar os trabalhadores no comando, mas para criar uma nova burguesia dócil.

Uma vez que a santidade da propriedade seja violada, haverá poucos caminhos para a desescalada. A Venezuela se antecipou.

É claro que, neste ponto, ou RET cai ou o sufrágio o faz. Enquanto o povo decide, nenhum partido pode governar através de uma crise sustentada. Não haverá “reparação histórica” alguma se nossas liberdades básicas forem perdidas.

“Enquanto o povo decide, nenhum partido pode governar através de uma crise sustentada. Não haverá qualquer “reparação histórica” se perdermos nossas liberdades básicas.”

Sinwell distorce o cálculo estratégico ao minimizar o quanto o MK está abertamente comprometido com este resultado. Felizmente, ele não é fã nem do EFF, nem do MK. Mas parece localizar seus problemas no nível de personalidades e ideias. Ele critica corretamente Zuma por seu sexismo, mas negligencia mencionar o seu anticonstitucionalismo e o histórico de tentativas de fomentar insurreições e golpes. Muito menos, não dá atenção às correntes sociais das quais essas práticas emergem.

A tendência antidemocrática é menos virulenta no EFF, mas ainda assim proeminente. Seria ingênuo acreditar que Malema deseja administrar o estado de maneira diferente de como administra seu próprio partido.

Em certo sentido, não são as políticas, mas a organização do estado que é o principal foco de conflito hoje. Os neoliberais querem acorrentar o estado ao mercado. Os cleptocratas querem privatizá-lo e subjugá-lo. A lógica de seus programas leva a um conflito com a forma democrática do estado.

Ambos irão obstruir alternativas progressistas. Mas a ameaça que representam não é igual.


Sobre o autor

NIALL REDDY

da África do Sul, é estudante de doutorado em sociologia na Universidade de Nova York.

 

Fonte: Jacobin Brasil | Republicado de Africa Is a Country
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