Por Letícia Queiroz

No dia 20 de novembro de 2023, o documento, que trata da política de regularização fundiária das comunidades quilombolas do Brasil, completou 20 anos. A data lembrada, em todo o Brasil, pelo Dia da Consciência Negra, instiga a população a pensar sobre as centenas de anos de escravização no Brasil e as marcas que podem levar milênios até serem reparadas. O dia criado para lembrar a luta e resistência dos negros e negras e promover debates sobre a importância do combate ao racismo, há 20 anos traz uma nova lembrança para as comunidades quilombolas: a criação do Decreto nº 4887/2003.

O decreto instituído para regulamentar o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das comunidades quilombolas foi assinado em 2003, no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para a Coordenação Nacional de Articulação de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), o documento foi um marco na história política quando se trata dos direitos das comunidades quilombolas, mas pouco tem sido feito para assegurar os direitos ao território das comunidades quilombolas e fazer valer a legislação nessas duas décadas.

A legislação e o cumprimento dos direitos dos e das quilombolas caminha a passos muito lentos, e também enfrenta retrocessos. De 1888, ano da abolição formal e inconclusa da escravização, até 1988, data da promulgação da Constituição Federal, não havia um direito formal escrito sobre território para as nossas comunidades quilombolas. A inexistência desse direito era fruto do racismo dos senhores escravocratas que sempre foram contra a abolição e queriam para si benefícios, como indenizações. Quando houve a abolição, quilombolas não tinham nenhuma segurança judicial. Em 1988, com muita luta negra quilombola, o direito ao território tradicional quilombola foi reconhecido na Constituição Federal.

De 1988 até 2003 não houve evolução significativa. No ano 2000 um Projeto de Lei, da deputada Benedita da Silva, muito parecido com o Decreto 4887/2003, foi aprovado pelo Congresso Nacional, mas foi vetado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, que publicou o Decreto 3912/2001. Porém esse documento não foi aprovado pelas comunidades quilombolas, que não concordaram com os conceitos de quilombo e de território que constavam. Esse decreto, na verdade, foi um grande retrocesso na luta quilombola e não possibilitou titulações. Em 2003, depois da vitória de Lula, a CONAQ pautou o tema e em novembro do mesmo ano o Decreto 4887/2003 foi publicado.

O decreto criou, pela primeira vez, um conjunto de políticas públicas para o desenvolvimento dos quilombos do país, distribuindo competências para diversos ministérios e áreas da administração pública. A legislação contou com ampla participação das comunidades quilombolas do Brasil, respeitando o direito da consulta prévia livre informada.

Vercilene Dias, advogada quilombola e coordenadora do setor jurídico da CONAQ, explica que as comunidades quilombolas reconhecem a importância do Decreto 4887, mas também entendem que o propósito não tem sido cumprido ao longo desses 20 anos.

“A gente precisa avançar na regularização dos territórios, porque é um direito. Houve uma luta para a garantia desse direito e o Estado Brasileiro é obrigado, tem o dever de titular essas áreas, mas isso não está acontecendo. Infelizmente temos que falar que apesar dos avanços, pouco se avançou”, disse a advogada.

Segundo os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a população quilombola que reside em territórios titulados representa apenas 4,3% do total de quilombolas do país. Assim, 95,67% dessa população (ou 1.270.360 pessoas) não obtiveram os títulos definitivos de suas terras no processo formal de regularização fundiária. (Veja mais números abaixo)

Vercilene explica que o Decreto 4887 foi inovador e se diferenciou de todos os outros já vistos na legislação, criado unicamente para atender famílias quilombolas em suas particularidades. “Além da Constituição, esse é o primeiro decreto que cuida especificamente das comunidades quilombolas e do direito ao território e traz conceitos muito importantes, deixando nítido quem são os quilombolas”.

Outro fato marcante é que foi rompido o conceito de terras privadas da legislação brasileira. O Artigo 17 afirma que “a titulação prevista no Decreto será reconhecida e registrada mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades” e que “as comunidades serão representadas por suas associações legalmente constituídas”

“Para a Legislação Brasileira o título de territórios é individual e com esse decreto o povo quilombola rompe com essa lógica da comercialização e da terra e do território enquanto mercadoria. Trata de coletividade, e não do direito de terra como propriedade individual”, disse Vercilene.

No ano seguinte da sua criação o Decreto foi alvo de uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) das forças conservadoras. Na época, em 2004, o PFL – Partido da Frente Liberal, impetrou a Ação junto Supremo Tribunal Federal – STF, de número 3.239/04, contestando a constitucionalidade do Decreto 4.887/03. O movimento quilombola nunca esteve tão assíduo e mobilizado para fazer valer a legislação. A defesa desse Decreto ia muito além do interesse pela garantia de território ancestral, mas buscava acima de tudo a garantia dos direitos dos quilombolas enquanto brasileiros e pela necessidade de sair da invisibilidade e possuir uma vida digna.

“Na época um dos pontos mais questionados foi a questão da identidade quilombola e da autonomia dos quilombolas sobre os seus territórios. Questionaram o Artigo 2°, que define e descreve quem são quilombolas e quais territórios são considerados quilombolas. Sobre a autonomia dos povos de se autoidentificarem como quilombolas, mas o artigo já trazia especificidades e características. Pessoas com trajetórias históricas próprias dotadas de relações territoriais específicas, ancestralidade negra relacionada com processo de opressão e escravização sofrida”, relembrou Vercilene.

Após 14 anos de tensão, insegurança jurídica e luta dos e das quilombolas, em fevereiro de 2018 todos os ministros e ministras do STF, exceto o relator, votaram pela improcedência da ADI, declarando a constitucionalidade do Decreto 4.887/03.

Em duas décadas as comunidades quilombolas ganharam visibilidade e espaço, mas pouco se avançou quando se trata de titulação dos territórios quilombolas. O Brasil conta com mais de 5 mil comunidades quilombolas e pouco mais de 240 títulos emitidos pelo Incra e governos estaduais, sendo que grande parte são títulos parciais. “Temos inúmeros processos e judicializações alegando a decadência dos decretos. São mais de 1800 processos parados no Incra.  A gente espera que nos próximos 20 anos não precisar fazer críticas à aplicabilidade”, afirmou Vercilene.

A burocracia, a falta de recursos e de servidores no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) dificulta os processos. Entre os anos 2019 e 2022, mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro, as titulações foram paralisadas. A omissão do político na proteção dos quilombos foi reconhecida até pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mesmo com a proteção territorial quilombola sendo assegurada na Constituição Federal.  Até a Fundação Cultural Palmares, na época comandada por Sérgio Camargo, nada fazia. A população quilombola ficou totalmente vulnerável e desprotegida e sofreu episódios de racismo vindos do presidente da república.

Algumas ações recentes tornaram a pauta mais ampla, como a contabilização de quilombolas no Brasil. Segundo os dados do Censo 2022 do IBGE, divulgados em julho deste ano, o Brasil possui um total de 1.327.802 quilombolas. A CONAQ afirma que o número é muito maior, já que há vários relatos de quilombolas não entrevistados. Essa é a primeira vez que as comunidades quilombolas são incluídas nas estatísticas oficiais da pesquisa.

A pesquisa inédita informa que mais de 1,3 milhão de pessoas quilombolas habitam em 1.696 municípios do país. Conforme o IBGE, “foram identificados 473.970 domicílios onde residia pelo menos uma pessoa quilombola”.

O IBGE identificou apenas 494 territórios quilombolas oficialmente delimitados no país, que abrigavam 167.202 quilombolas. Isso significa que apenas 12,6% da população quilombola reside em territórios oficialmente reconhecidos, enquanto 87,4% estão em quilombos não delimitadas e reconhecidos.  Os números voltam a lembrar da necessidade de regularização dos territórios.

Uma pesquisa realizada pela Terra de Direitos em maio deste ano apontou que se o estado brasileiro mantenha o atual ritmo de regularização fundiária dos territórios quilombolas serão necessários 2.188 anos para titular integralmente os 1.802 processos abertos no momento no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Caso sejam consideradas também as titulações parciais dos territórios quilombolas com processos na autarquia federal, o tempo necessário é de 1.156 anos. Veja a pesquisa completa aqui.

A regularização e titulação dos territórios quilombolas é a principal pauta da CONAQ e dos quilombos atualmente. Além de cobrar este direito às autoridades, a CONAQ faz ações e luta por dignidade e segurança das famílias quilombolas. Um levantamento da CONAQ aponta que mais de 30 quilombolas foram assassinados nos últimos 10 anos.

Uma das vítimas foi Maria Bernadete Pacífico, a Mãe Bernadete. Mãe Bernadete era ialorixá, uma líder religiosa do candomblé. No dia 17 de agosto, dois homens invadiram a casa dela no quilombo Pitanga dos Palmares e a executaram com mais de 20 tiros.

A líder religiosa estava incluída no Programa Estadual de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, tinha a casa monitorada por câmeras e a Polícia Militar fazia rondas na região do quilombo, mas o aparato de segurança não foi suficiente para impedir a morte brutal da quilombola.

Bernadete era Coordenadora Nacional da CONAQ e liderança quilombola. Ela era mãe de Flávio Gabriel Pacífico dos Santos (Binho do Quilombo), liderança também assassinada há 6 anos. A ialorixá atuava na linha de frente para solucionar o caso do assassinato do seu filho. Os casos se somam a várias mortes violentas que se acumulam ao longo dos anos.

O coordenador executivo da CONAQ, Biko Rodrigues, afirma que o impacto sobre as famílias e as comunidades é imensurável.

“Queremos cobrar do estado brasileiro uma posição. Não dá para o Sistema de Justiça ignorar as violências que acontecem nos territórios quilombolas. A política de quilombo exige recurso físico e financeiro. Não tem como a gente resolver as questões dos quilombos com orçamento de R$ 10 milhões para 2024. Se o Governo Federal não colocar recurso, assassinatos semelhantes a esse, vão continuar acontecendo”, afirmou Biko Rodrigues”.

 

Fonte: CONAQ.

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