Por uma política antirracista da proteção

A cientista política francesa, autora de Um feminismo decolonial (2020), pergunta-se como é possível defender as populações vulneráveis (mulheres, pobres, pessoas racializadas, migrantes, minorias) sem recorrer ao sistema penal criado para criminalizá-las e oprimi-las, e que deixa impunes os agressores. Para Vergès, a violência é um componente estruturante do capitalismo e do patriarcado, mas a construção de um mundo pacífico não implica de forma alguma a passividade.

Ela observa que as mulheres brancas e burguesas também estão sujeitas a espancamentos, estupros e assassinatos, mas condena seu “feminismo civilizatório”, que apresenta o Estado como sinônimo de segurança e proteção. A resposta estaria em uma ação política inspirada nas experiências de comunidades, grupos militantes e profissionais da saúde, direito e educação engajados no campo da proteção.

Na contramão do feminismo carcerário e punitivista, a cientista política Françoise Vergès, autora de Um feminismo decolonial (Ubu Editora, 2020), propõe uma crítica do recurso à polícia e à judicialização dos problemas sociais, e pergunta: como podemos proteger as populações vulneráveis – incluindo mulheres, migrantes, pessoas pobres e racializadas, minorias trans e queer – sem recorrer ao sistema penal que foi concebido justamente para criminalizá-las? Sua análise não apresenta soluções prontas para acabar com as violências de gênero e sexuais, mas visa contribuir para a reflexão sobre a violência como componente estruturante do patriarcado e do capitalismo, e não como uma especificidade masculina.

A autora defende uma despatriarcalização e uma decolonização da proteção, uma alternativa ao securitarismo  patriarcal e estatal; uma política inspirada em experiências de comunidades, grupos militantes e profissionais da saúde, direito e educação engajados no campo da proteção. Afirmar que os mecanismos estatais e neoliberais de segurança são racializados não implica negar que as mulheres brancas e das classes burguesas também estejam sujeitas a espancamentos, estupros e assassinatos; implica dizer que interrogar a proteção pelo viés da classe, da raça e da heteronormatividade amplia o campo de ação.

Vergès ainda busca responder aos seguintes questionamentos: quais são os fundamentos do feminismo carcerário? Por que a proteção das meninas e mulheres se tornou um argumento que permite reforçar o campo de ação da polícia e do judiciário? De que modo a proteção de umas serve ao objetivo de atacar outras?  Quem são essas “outras” que o Estado patriarcal considera legítimo atacar – e como elas se defendem desses constantes ataques?

 

Françoise Vergès

 

Françoise Vergès nasceu em 1952, em Paris, França. Cientista política, historiadora, ativista e especialista em estudos pós-coloniais, Vergès cresceu na ilha da Reunião (França), morou na Argélia, no México, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Graduou-se em Ciências Políticas e Estudos Feministas na San Diego State University (1989). PhD em teoria política pela Berkeley University of California (1995), publicou sua tese Monsters and Revolutionaries: Colonial Family Romance and Métissage [Monstros e revolucionários: o romance da família colonial e a mestiçagem] pela Duke University Press (1999). Lecionou na Sussex University e na Goldsmiths College (Inglaterra). De 2009 a 2012, presidiu o comitê nacional francês de preservação da memória e da história da escravidão. Entre 2014 e 2018 foi titular do programa Global South(s) no Collège d’études mondiales da Fondation Maison des Sciences de l’Homme. Publicou diversos artigos sobre Frantz Fanon, Aimé Césaire, abolicionismo, psiquiatria colonial e pós-colonial, memória da escravidão, processos de creolização no oceano Índico e novas formas de colonização e racialização. Trabalha regularmente com artistas, tendo sido coautora dos documentários Aimé Césaire face aux révoltes du monde [Aimé Césaire em face das revoltas do mundo] e de Maryse Condé: Une voix singulière [Maryse Condé: uma voz singular], ambos dirigidos por  Jérôme-Cécile Auffret, e consultora curatorial da Documenta 11 (2002) e da Paris Triennale (2012). Organizou as exposições L’Esclave au Louvre: une humanité invisible [O escravo no Louvre: uma humanidade invisível], no Museu do Louvre, em 2013, além de Dix femmes puissantes [Dez mulheres poderosas], em 2013, e de Haiti, medo dos opressores, esperança dos oprimidos, em 2014, ambas para o Mémorial de l’abolition de l’esclavage, de Nantes.

 

Uma teoria feminista da violência: por uma política antirracista da proteção. Françoise Vergès. Trad. Raquel Camargo • Ubu • 160 pp. • R$ 54,90

Fonte: Quatro Cinco Um.

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