Por Ícaro Jorge*

Falar de resistência é tratar de estar em conjunto pensando a defesa da Universidade. Ao compartilhar a mesa com Georgina Gonçalves, Cássia Maciel, Anne Bittencourt e Roi Rogeres, permito dizer que há uma grande importância em se ver na Universidade. Como jovem, negro, gay, consegui abrir as portas do armário na Universidade por sentir conforto nesse espaço de múltiplas escutas e é por conta disso, que entendo a Universidade como espaço de autorreconhecimento, de identificação e entendimento do ser enquanto sujeito.

Alinhada a discussões sobre os relatos das ações afirmativas nas Universidades, permito focar na leitura sobre o judiciário e o entendimento sobre o Estado. A concepção do Estado liberal, normativista, que coloca na centralidade a ideia de igualdade procedimental e mesmo dividido entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, esses três poderes brigam entre si numa arena para decidir o que é o Brasil.

Trato aqui das leituras de Streck na atividade apresentada na Faculdade de Direito em 2018, que pontua sobre momento que estamos vivendo, de muitos conflitos que aponta a mira para o Estado democrático de direito, a defesa da Constituição Federal e dos dispositivos coletivos que garantimos pós 1988 como a PEC das Domésticas, Lei de
cotas, Lei 10639/2010, é revolucionária. E eu não queria estar dizendo isso, queria que estivessemos pensando as disputas para o futuro, pensando ações afirmativas em todos os âmbitos institucionais, pensando novos aprendizados nas escolas, mas infelizmente, hoje o que estamos nos debruçando como perspectiva e tática de sobrevivência é defender o que já conquistamos.

A judicialização das ações afirmativas é um fenômeno desta crise do Estado, é uma consequência de um processo de ataques às ações afirmativas que nascem antes da própria judicialização. Trato aqui também da diferença entre judicialização e ativismo judicial, quando tratamos de judicialização, não estamos apontando apenas o direito de
ação de cada cidadão em atuar juridicamente na busca pelo seu direito, mas trago aqui, na perspectiva de Santos (2011), a ideia de contrarrevolução jurídica, ao ver esse Poder Judiciário que se coloca contra as garantias fundamentais que tanto lutamos. A partir disso, busco diferenciar a judicialização do ativismo judicial, segundo Tassinari (2012) , o ativismo judicial é quando o Poder Judiciário julga sem observar todos os parâmetros
legais e constitucionais com o fim de chegar a um resultado que não é de direito.

O que estamos observando na discussão das ações afirmativas são juízes que julgam a Lei de Cotas a partir da sua autovivência, não observando a lei, não observando as produções intelectuais da Universidade brasileira, dos movimentos sociais negros brasileiros e nem dos pesquisadores sobre o assunto. Trago como exemplo a APELAÇÃO CÍVEL Nº 2008.71.00.002545-0/RS, em que o juiz, não legitima a Comissão de HeteroIdentificação Racial alegando, “flagrante ilegalidade na aplicação pela Administração do Programa de Ações Afirmativas, eis que a
Universidade deixou de adotar critérios seguros de averiguação da situação sócio-econômica dos candidatos beneficiados pelo sistema de reserva de vagas.” (p.6), além de apresentar que a Universidade Federal do Rio Grande do Sul não têm liberdade para adotar os mecanismos, pontuando sobre a falta de procedimentos de diferenciação
racial no Brasil, tratando da premissa constitucional de igualdade procedimental e alegando desrespeito ao princípio da legalidade.

Diante dessa decisão, trago um questionamento: Será que não existe diferenciação entre sujeitos no Brasil ou essa ideia neoliberal, individualista, normativa, de igualdade procedimental visa apenas garantir a manutenção de privilégios destes próprios que estão no poder judiciário e que historicamente colocam a mira na população negra? Será que não existe diferenciação entre sujeitos no Estado que encarcera, segundo dados do INFOPEN, majoritariamente, pessoas negras? Será que não existe diferenciação dos sujeitos, quando observamos a retirada da maternidade de mulheres que estão em uso de crack e outras drogas de forma irresponsável, excluindo a
possibilidade dessa mulher ser sujeito? Será que não existe diferenciação entre sujeitos quando o Poder Judiciário nega a possibilidade de homens trans conseguirem continuar a sua paternidade de forma saudável diante de uma relação afetiva?

Somos nós que estamos na Universidade que precisamos entender as contradições desse sistema e é por conta disso que me aprofundo na leitura sobre a crítica racial da hermenêutica jurídica, tratando como referência o Moreira 2019), porque entender a interpretação destes fenômenos e as relações com os princípios jurídicos que constroem os argumentos dos juízes, que na sua grande maioria são brancos, criando possibilidade para elaborar estratégias de combate ao problema apresentado. A judicialização das ações afirmativas é um problema, sobretudo, contra a
autonomia universitária, é um problema que se apresenta de forma contraditória sobre o que é o princípio da igualdade, já que temos um alinhamento sobre a igualdade material e não apenas a igualdade formal, como nos ensinas Júnior (2003), que trata sobre a discriminação positiva e me aprofundo na leitura de Moreira (2019), que apresenta a desigualdade de status social e cultural. Uma mulher negra no espaço de Poder numa Universidade como a UFBA está colocada na mira porque esse lugar é negado a ela, quando a professora Georgina Gonçalves é golpeada na UFRB e negada a tomar posse na reitoria, estamos falando de uma desigualdade de status social e cultural que diz que uma mulher negra não pode ser reitora de uma Universidade Federal.

Então, precisamos entender que essas relações, que são sobretudo, discursivas e identitárias, também afetam o judiciário, também afetam as decisões. E o que temos visto hoje é um Estado de exceção que se expressa na decisão desse juiz ao não observar as relações de desigualdades, nem a autonomia universitária que forja o Estado
Democrático de Direito.

Referência:
SANTANA, Icaro; SANTANA, Luciene. A bala não erra alvo: corpos negros em luta pela vida
e liberdade. LE MONDE DIPLOMATIQUE. 2021. Disponível em
https://diplomatique.org.br/a-bala-nao-erra-alvo-corpos-negros-em-luta-pela-vida-e-liberdade/
Acesso em 20 de fevereiro de 2021
TASSINARI, Clarissa. A atuação do judiciário em tempos de constitucionalismo
contemporâneo:
uma crítica ao ativismo judicial. Rev. Fac. Dir. Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 28, n. 2: 31-46,
jul./dez. 2012
SILVA JUNIOR, Hédio. Ação afirmativa para negros(as) nas universidades: a concretização do
princípio constitucional da igualdade. Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica
e a injustiça econômica. organização, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e Valter Roberto
Silvério. – Brasília : Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira,
2003. 99 p.
SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática da justiça. 3 ed. São Paulo :
Cortez. 2011
MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São
Paulo: Contracorrente, 2019.
TRF4. APELAÇÃO CÍVEL : 2008.71.00.002545-0/RS. Relator: Des. Federal CARLOS
EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ DE: 30/07/2009.

 

*Intervenção apresentada na Mesa Ações afirmativas: histórico, avaliações e perspectivas no Congresso da UFBA 2021 em 24 de fevereiro de 2021.

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