Por Marcelo Milan*

O racismo é, infelizmente, um dos fenômenos estruturantes do Brasil enquanto nação, representando um complexo problema com múltiplas dimensões. E como a economia faz parte da sociedade, de forma integrada e não apenas agregativa, para o desespero de muitos economistas pró-capital, ela acaba necessariamente refletindo todas as mazelas e desajustes históricos, quando não contribui, ela própria, em sua dinâmica cega pelo lucro, para acentuá-los. Essa reciprocidade entre racismo e economia política nem sempre recebe a devida atenção. O Novembro Negro proporciona um momento para enfatizar a importância da economia política do racismo. No caso da economia, o racismo se reflete nas estatísticas que tratam dos seres humanos envolvidos em transações econômicas, ou mesmo naquelas em que estão impossibilitados de atuar pela exclusão, desde que seja possível identificar as características biotípicas dos mesmos. Como a economia se estrutura e se organiza pela mobilização da capacidade de trabalho (além dos recursos naturais), aquelas que mais recebem atenção remetem ao mercado para a força de trabalho, embora sejam insuficientes para compreender os desdobramentos econômicos do enraizamento do racismo no Brasil. É preciso considerar também o consumo de bens e serviços e a acumulação de ativos.

Sobre o trabalho, a legislação brasileira proíbe a negociação da força de trabalho infantil (enquanto a boiada não passar e eliminar a intervenção que viola o sacrossanto direito natural de crianças de quatro anos de venderem seus serviços no livre mercado… como nos gloriosos anos da revolução industrial, ou mesmo nos anos pós-ventre livre no Brasil). Isto é, o trabalho de menores de 16 anos, embora permita a partir dos 14 anos se houver alguma atividade de ensino profissional envolvida. Como para quase tudo o que verdadeiramente interessa no Bananil a legislação é letra morta, o trabalho infantil existe no País. E quase 63% desta força de trabalho é negra. Se o trabalho for doméstico, este resquício patriarcal, o número aumenta para 73,5%, alcançando 94% no caso das meninas negras, com a sobreposição da opressão de raça e de gênero. As implicações de longo prazo do trabalho infantil para esta parte da força de trabalho negra são devastadoras. A pensadora Djamila Ribeiro sintetizou as principais características do racismo estrutural brasileiro. Por ser fenômeno de longa duração, o racismo começa antes da infância e contribui decisivamente para determinar a trajetória de vida de negras e negros, apontando para duas situações, como se discute a seguir: integração incompleta e precária no mercado para a força de trabalho ou exclusão deste mercado e de quase todos os demais.

Dados do IBGE permitem identificar também a sobreposição dos efeitos de médio prazo da pandemia e de longo prazo do racismo estrutural sobre o perfil do desemprego. Assim, enquanto no 1º trimestre de 2021 a população economicamente ativa era composta por 45% de brancos, 9% de pretos e 44,8% de pardos, a desocupação total ou média, já elevada, de 14,7% se distribuía em 11,9% de brancos desocupados, 16,9% de pardos e 18,6% de pretos. Segundo o DIEESE, 71,4% dos demitidos durante a primeira onda da pandemia eram negros, e que mesmo os dados de desocupação são enganosos, pois a subutilização da força de trabalho é bem mais alta, e ainda maior para os negros e principalmente para as negras. Em termos de rendimentos, em um estudo sobre desigualdade social por raça no Brasil, o IBGE aponta que, nas ocupações formais, os brancos recebiam em média, em 2018, R$ 3.282, enquanto os negros recebiam 63% deste valor, R$ 2.082. Para as ocupações informais, a razão era ainda pior, de R$ R$ 1.050/1.814, pouco mais da metade.

O racismo estrutural se reflete assim no consumo de serviços. E em condições de pandemia, a restrição no acesso a serviços de saúde causada pelo racismo estrutural se torna outro elemento de manutenção dos baixos padrões de vida dos negros. Por exemplo, a taxa de letalidade da COVID-19 entre os negros, segundo a PUC-RJ, foi de 55%, enquanto para os brancos foi de 38%. O instituto Pólis mostra que a taxa padronizada de óbitos pela COVID-19 para a população negra foi de 172/100 mil, enquanto para a população branca foi de 115/100 mil. Isto se explica em parte pelo fato de que o racismo estrutural proporciona uma taxa de vacinação duas vezes maior para a população branca do que para a população negra.

Isso remete ao acesso da população negra aos resultados do trabalho social, com um componente de cidadania e outro mercantil. Mas mesmo no âmbito não mercantil o racismo se apresenta. Além dos serviços de saúde pública, há diferenças substanciais em termos de apropriação do trabalho social representado pelas mercadorias. No estudo sobre desigualdade, o IBGE mostra que há bem mais negros e negras do que brancos vivendo em habitações sem coleta de lixo, sem abastecimento de água, sem esgotamento sanitário, com adensamento considerado excessivo e sem máquina de lavar. Há portanto uma maior incidência de pobreza e miséria entre os negros. De fato, o estudo sobre desigualdade racial do IBGE informa que cerca de 33% da população negra vive abaixo da linha de pobreza, isto é, com menos de US$ 5,5/dia (utilizando a paridade do poder de compra entre o dólar e o real para 2011), enquanto este número é de 15,4% para a população branca.

Esses dados sugerem que o foco no mercado para a força de trabalho é importante, mas insuficiente, pois o mesmo reflete o funcionamento de processos mais profundos. Por exemplo, o racismo estrutural tem sua origem na escravidão, a antítese de um mercado para a força de trabalho. E portanto opera no sentido de manter um persistente elemento de exclusão. A tese de que havia no período pós-abolição legal da escravidão um projeto de branqueamento da sociedade, principalmente com os imigrantes europeus, faz sentido. Assim, aqueles que mais trabalhavam, sob coação, para enriquecer ‘a nação’, viraram, subitamente, “desocupados” e “vagantes” nas cidades “pós”-escravidão. Mas assim como o trabalho infantil, o trabalho escravo não foi ‘abolido’ totalmente e permanece até hoje. O caso Madalena, liberta do cativeiro depois de 38 anos, não deixa margem a dúvidas. Assim, a transição da população negra, de proletários para trabalhadores, que não deveria ser considerada um fim, é intermitente, incompleta, oscilante e distorcida, proporcionando importantes homologias com o regime de trabalho forçado anterior. As diferenças tendem a ser meramente funcionais, com base na forma de integração na economia. Antes, havia escravidão explícita, com inclusão forçada e coagida pela brutalidade, exemplarmente retratada no filme “12 anos de Escravidão”. A escravidão formal não pode excluir, pois precisa de cada gota de suor do trabalho negro. Hoje, a integração incompleta e muitas vezes simbólica e extremamente seletiva, na economia capitalista, é homóloga à escravidão, mas com um forte componente contraditório de exclusão. Há portanto a permanência e a reafirmação do arcaico na suposta modernidade.

Com o risco de ser excessivamente simplista, a economia política do racismo opera por dois mecanismos. O primeiro é o da opressão difusa. O racismo estrutural cria obstáculos para a venda presente da força de trabalho negra por mecanismos de exclusão de longo prazo em outras esferas sociais, ao manter baixos níveis de consumo de partes do trabalho social: educação, alimentação, saúde, entretenimento, trocas culturais etc. O mecanismo se retroalimenta, pois isso dificulta a venda futura e a capacidade de manutenção do consumo da própria força de trabalho, sendo esperado que o racismo estrutural se transmita intergeracionalmente. E quando os obstáculos são superados, a venda é feita sob condições precárias (com exceções conhecidas, como o esporte de alto rendimento e a cultura de massas). Como consequência, o valor da força de trabalho negra é menor, por todas as razões estruturais do racismo, o que se reflete em salários menores. Como consequência, os negros apresentam menor capacidade de consumir, por razões estruturais, e frequentemente pela operação do racismo dos proprietários de mercadorias de consumo.

Este primeiro mecanismo opera em termos classistas para dividir e conquistar. Desloca o eixo do conflito da relação capital-trabalho para as relações intra-trabalhistas, acentuando as características pessoais dos proprietários da força de trabalho (raça, mas também gênero, nacionalidade, idade, educação etc.). Ou seja, as diferenças a serem instrumentalizadas não são apenas entre trabalhadores brancos e negros. O processo de dividir para conquistar se aprofunda dentro das próprias raças. A própria diferenciação dos negros entre pretos e pardos já desempenha este papel. Basta instilar no agrupamento ‘pardo’ uma maior identidade com os brancos ou um distanciamento dos pretos para criar falsas identidades e logo evitar convergência de interesses econômicos e políticos. Por exemplo, Al Hajj Malik Al-Shabazz, mais conhecido como Malcolm X, em muitos discursos no início dos anos 1960 já diferenciava entre o negro da casa grande e o negro da plantação. O famoso discurso “The Race Problem”, proferido para a Associação dos Estudantes Africanos e o capítulo da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor do campus da Universidade Estadual de Michigan, em 23 de janeiro de 1963, é talvez o mais importante. Al-Shabazz defende que durante a escravidão havia aqueles dois tipos de negros, e como o negro da casa de identificava com o senhor de escravos, não com os negros do campo. A tragédia da divisão de raça foi bem representada no filme “Django Livre” pelo mordomo Stephen (a personagem de Samuel L. Jackson).

O segundo mecanismo do racismo estrutural, da opressão concentrada, opera pela exclusão dos negros do circuito da mercadoria força de trabalho, que existem nesta condição apenas de forma latente. A evidente racialização da pobreza e da miséria não surpreendem, portanto. Mais importante, a impossibilidade de vender a força de trabalho (ou, mais raro ainda, comprá-la) vem acompanhada da violência não apenas econômica, mas sobretudo político-estatal, com episódios de brutalidade também civil, o que reforça os elementos de arcaísmo do projeto estruturante do racismo. A eliminação física dos negros e negras é o resultado do segundo mecanismo. A morte de Beto Freitas em Porto Alegre serve para simbolizar a operação do processo, pelo qual a contagem de corpos negros não para. Há portanto um verdadeiro massacre, físico e psíquico, para além do econômico. Mas não há no Brasil manifestações na escala do ocorrido nos Estados Unidos após a morte de George Floyd. A passividade não é específica da população negra, mas, dada a dimensão do massacre, se mostra pouco compreensível. E mais ainda quando se resgata o exemplo histórico de Zumbi, verdadeiro e legítimo herói da pátria, e que tem hoje no executivo federal seu simbolismo aviltado. O Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga em União dos Palmares (AL), remete a uma estrutura de poder dual, de autodefesa, um território de resistência pela exclusão autodeterminada (não faz sentido buscar integração em uma sociedade escravista…como escravo) e redirecionamento do trabalho para a produção de subsistência.

Mas considerando as diferenças históricas, quais as alternativas? Em 1944 o pensador sueco Gunnar Myrdal publicou o livro “Um Dilema Americano: O Problema dos Negros e a Democracia Moderna”. Myrdal acreditava que a democracia poderia contribuir para a superação do racismo. Anos depois, publicou outro trabalho, sobre a teoria da causação cumulativa, que permite explicar melhor a persistência do racismo naquele país e também no Brasil, como por exemplo, a transmissão intergeracional de pobreza que caracteriza o primeiro mecanismo. Um outro livro, de David Colander, sobre “Racismo, Liberalismo e Economia”, discute a tese de que em uma economia liberal (seja lá o que isso signifique) não tem lugar para o racismo, pois a discriminação é ineficiente para as empresas. Outros capítulos da obra mostram porque essa visão não faz sentido. A defesa explícita de Milton Friedman do preconceito racial em “Capitalismo e Liberdade”, na linha do direito natural ao preconceito pelos vendedores de mercadorias, mostra que o racismo está enraizado. É estrutural, lá como cá. A história desmente cotidianamente a narrativa liberal.

Permanece, de qualquer forma, a questão. É possível formular uma hipótese para a manutenção do racismo estrutural, mesmo em uma sociedade supostamente democrática, com leis, eleições e um poder judiciário supostamente independente. Sofrendo ataques permanentes pelo mecanismo de opressão concentrada, cabe aos negros um permanente recuo estratégico, submetendo-se à opressão difusa que integra dividindo. Neste caso, é melhor procurar nichos de integração subordinada, sujeita ao primeiro mecanismo, por pouco provável que seja, do que perecer pela operação do segundo. Claro, isso pressupõe uma certa instrumentalização ou racionalização que nem sempre pode se verificar pela própria operação do racismo. Como diriam os Racionais MCs, na música Capítulo 4, Versículo 3: “27 anos, contrariando a estatística” (de expectativa de vida). Não há tempo para reagrupar e organizar o contra-ataque. A minoria integrada deixa de ser o alvo principal, embora siga sendo alvo, como mostra o assassinato de Marielle Franco, tal qual Eurídice no Orfeu da Conceição, de Vinícius de Moraes. Assim como aqueles não negros que apoiam a guerra de resistência negra, como Anderson Gomes.

O verdadeiro dilema, portanto, é como ir além da tese do mal menor. Isso de forma alguma significa abrir mão dos exíguos espaços abertos pela luta antirracista. A brava bancada negra na vereança em Porto Alegre, ela mesma objeto de ódio racial em muitas oportunidades, é exemplo a ser multiplicado e fortalecido. Mas as instituições no Brasil não funcionam estruturalmente para a democracia, e sim para manter privilégios oligárquicos. Então, o trabalho contra o racismo passa necessariamente também pela organização nos bairros e nas comunidades, onde o mecanismo de opressão concentrada é mais presente. Os direitos são extremamente importantes, principalmente pelo fator de conscientização, mas ainda assim sempre insuficientes, dada a elevada probabilidade de se tornarem letra morta e serem promulgados e parametrizados por instituições oligárquicas e integradas em uma sociedade estruturalmente racista. Parafraseando Carlos Drummond de Andrade, na poesia Nosso Tempo: “Xs negrxs pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. As flores de lótus negras não nascem da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.”

(*) Bacharel, Mestre e Doutor em Economia.

 

Fonte: Sul 21.

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