Por Paulo Victor Melo

Programas de governo de prefeitos empossados em 2021 institucionalizam políticas que favorecem a vigilância e segregação dos grupos vulnerabilizados.

Muralha Digital; Cercamento eletrônico da cidade; City Câmeras; De Olho na Rua. Com esses e outros nomes, prefeitos de capitais brasileiras, eleitos ou reeleitos em novembro de 2020, batizaram programas e ações na área da segurança pública que colocam as tecnologias de informação e comunicação a serviço de uma política vigilantista, de segregação e controle.

Um levantamento do Instituto Igarapé já apontava a aplicação de reconhecimento facial – uma das tecnologias utilizadas – por polícias, guardas civis e outros órgãos em 30 cidades de 16 estados do país.

A partir das últimas eleições municipais, vislumbra-se um crescimento do fenômeno, considerando que, dentre os 26 prefeitos de capitais empossados em janeiro de 2021, 17 apresentaram propostas[i] que, de algum modo, preveem o uso das tecnologias de informação e comunicação na segurança pública.

Tarcízio Silva, que é bolsista de tecnologia e sociedade na Mozilla, qualifica o uso acrítico dessas tecnologias na segurança pública como “soluções imediatistas e equivocadas”. Ele acredita que a expressiva quantidade de programas governamentais com essa perspectiva representa uma tendência de fortalecimento da anuência à violência estatal, o que impacta diretamente a democracia.

O longo compromisso racista da sociedade brasileira é mantido por uma estratificação do respeito aos direitos humanos, onde a interseção de negritude e pobreza cria grupos preferenciais que são alvos constantes de vigilância e da violência estatal – efetiva ou sempre potencial”, ressalta Tarcízio.

 Jornalista e pesquisadora sobre governança da internet, Mariana Gomes também compreende que o investimento público em tecnologias de vigilância tem relação direta com o racismo estrutural e a cultura punitivista contra grupos vulnerabilizados da sociedade.

 Mariana enfatiza que essa “é uma decisão que atualiza o punitivismo, ideologia que alicerça as políticas de segurança pública em nosso país, e consequentemente atualiza os mecanismos do racismo e outras opressões. Em termos de democracia, é um investimento num setor que já tem a prática de punir pessoas negras, periféricas e LGBTs”.

 

A institucionalização da vigilância

Não desconsiderando as diversas gradações das propostas, o conjunto dos programas governamentais e a pulverização partidária[ii] desses gestores materializam a utilização das tecnologias de informação e comunicação como instrumentos a serviço do policiamento preditivo, que pode ser resumido como uma prática de segurança baseada na indicação de futuras cenas criminosas, adotada com base em dados criminais passados ou em características “suspeitas”.

Em outros termos, o policiamento preditivo implica em “reconhecer” alguém que em algum momento da vida tenha cometido um crime e, mesmo que já tenha cumprido a respectiva pena, colocá-lo num “banco de dados” de possíveis reincidências, ou então, a partir de determinados perfis, definir previamente alguém como potencial criminoso.

Ainda que diferentes iniciativas em diversas partes do mundo, inclusive no próprio Brasil[iii], proponham uma maior regulamentação ou o banimento desse tipo de tecnologia, a perspectiva a partir de 2021 é a de ampliação do seu uso. Isso resultará no aprofundamento de uma legitimação institucionalizada do vigilantismo como estratégia de segurança pública.

Nessa linha, o reconhecimento facial foi expressamente defendido no programa governamental de quatro prefeitos empossados, nos seguintes termos (o nome do prefeito, da cidade e do partido estão identificados entre parênteses):

Ampliar o videomonitoramento, incorporando tecnologia de reconhecimento facial e análise de comportamento dissonante (Gean – Florianópolis – DEM).

Análise de reconhecimento facial e comportamental e mapeamento das áreas com maior incidência de crimes, integrando com as câmeras de segurança e o sistema de monitoramento eletrônico, que serão ampliados para outras ruas e avenidas da cidade (Delegado Pazolini – Vitória – Republicanos).

Implantar o cercamento eletrônico da cidade, com câmeras e softwares de qualidade, leitura de placas e reconhecimento facial (Edvaldo Nogueira – Aracaju – PDT).

Implantar um sistema integrado de reconhecimento facial e utilizar as tecnologias de comunicação e informação para combater a criminalidade (Cinthia Ribeiro – Palmas – PSDB).

Três das propostas analisadas também previam, de forma incisiva, o uso de drones, nos seguintes termos:

Utilização de drones para acompanhamento de atividades nas praças, ocupações e atividades irregulares, segurança de instalações (Gean – Florianópolis – DEM).

Aquisição de drones com Inteligência Artificial para monitoramento da cidade (Maguito Vilela – Goiânia – MDB).

Aumento do número de drones usados na bem-sucedida estratégia de combate à criminalidade (Bruno Covas – São Paulo – PSDB).

A intensificação do videomonitoramento ou da vigilância por câmeras é outra das estratégias mencionadas nas plataformas de prefeitos das capitais brasileiras:

Criar o programa “De olho na rua”, que estabelece a implantação de câmeras em pontos estratégicos das cidades (Maguito Vilela – Goiânia – MDB).

Ampliar pontos de videomonitoramento e estruturar o serviço de inteligência em segurança, favorecendo a identificação dos principais fatores de violência e criminalidade (Marquinhos Trad – Campo Grande – PSD).

Integrar mais 4.240 câmeras ao Programa City Câmeras, mais que dobrando o número atual, além de instalar 12 mil equipamentos para vigilância nas escolas da rede municipal (Bruno Covas – São Paulo – PSDB).

Utilizar a infraestrutura de iluminação pública para ampliação das câmeras de videomonitoramento (Edvaldo Nogueira – Aracaju – PDT).

Instalação de câmeras de monitoramento em torres de observação nas principais vias de acesso e pontos estratégicos da cidade, que enviarão imagens de toda cidade em tempo real para uma central da Guarda Municipal (Tião Bocalom – Rio Branco – PP).

Ampliar o número de câmeras de videomonitoramento em espaços públicos, bem como modernizar a Central de Monitoramento (Álvaro Dias – Natal – PSDB).

Instalação de câmeras de monitoramento dentro dos ônibus e em pontos de parada, com supervisão da Guarda Municipal e da Polícia Militar, e instalação de câmeras de monitoramento por toda cidade (Cícero Lucena – João Pessoa – PP).

Ampliar o sistema de videomonitoramento das vias e logradouros públicos com uso de câmeras de vigilância nos espaços públicos de Teresina, permitindo a prevenção da criminalidade e da violência (Dr. Pessoa – Teresina – MDB).

Vale ressaltar ainda que, no sentido da legitimação institucional, o uso dessas tecnologias tem sido estimulado por ações normativas do Governo Federal, a exemplo da Portaria 793/2019 que, ao regulamentar o Fundo Nacional de Segurança Pública, prevê a disponibilização de recursos para o “fomento à implantação de sistemas de videomonitoramento com soluções de reconhecimento facial, por Optical Character Recognition – OCR, uso de inteligência artificial ou outros”.

Outra questão relevante a considerar, compreendendo o vigilantismo como uma problemática global, diz respeito à convergência de interesses entre órgãos de segurança e defesa e empresas de tecnologia na segregação e controle dos espaços urbanos via captura, tratamento e uso de dados dos cidadãos. Isso extrapola a área da segurança e se constitui como articulação necessária entre empresas privadas e instituições de segurança e defesa para o que a pesquisadora estadunidense Shoshana Zuboff descreve como capitalismo de vigilância[iv].

Num país já caracterizado pela materialização de lógicas racistas na atuação das polícias e órgãos de segurança pública, como é o caso do Brasil, pesquisadores e organizações da sociedade civil têm alertado que a legitimação institucionalizada do vigilantismo nos espaços urbanos tem como uma das principais consequências o agravamento de práticas racistas, como a identificação e prisão, a partir do uso das tecnologias de informação e comunicação, de pessoas negras que não tenham cometido qualquer crime.

Um caso emblemático nesse sentido ocorreu em janeiro de 2020, no Rio de Janeiro, quando Victor Mendes e Leonardo Nascimento foram “confundidos” por câmeras de videomonitoramento e presos.

Igualmente alarmante é o fato de 90,5% das pessoas presas a partir da identificação por reconhecimento facial no Brasil serem negras, de acordo com pesquisa da Rede de Observatórios de Segurança.

 

A perversidade de colocar a população como “aliada” do punitivismo

No intento de consolidar a vigilância e o punitivismo como tônicas na política de segurança pública, alguns gestores propõem também o envolvimento direto da população nas estratégias de monitoramento. Com isso, contribuem para uma espécie de grande “big brother” público, em que todo mundo vigia todo mundo e o Estado pune os vigiados.

Um exemplo é o programa de governo do prefeito Maguito Vilela (MDB)[v], de Goiânia, que estabelecia que “condomínios com sistemas de câmeras de vídeo serão obrigados a ter parte do equipamento monitorando as ruas”. Medida semelhante foi defendida por Rafael Greca (DEM), em Curitiba, que apontava “o incentivo à população (residências, prédios e condomínios)” na colaboração com o programa Muralha Digital.

Já em Belo Horizonte, no plano do governo Kalil (PSD), estava previsto que o Centro de Operações da Prefeitura “passará a contar também com as câmeras e sensores instalados pelo próprio cidadão, cujas imagens poderão ser disponibilizadas por meio de uma plataforma colaborativa de monitoramento, ampliando a cobertura da cidade e aprimorando as respostas às diversas situações de segurança e desordem pública”.

Para Tarcízio Silva, que é também doutorando na Universidade Federal do ABC (UFABC), a consciência de determinados supostos privilégios  a exemplo daqueles relacionados à cor da pele, ao local em que se vive e à renda – leva boa parte da população a se afiliar a projetos equivocados de promoção de encarceramento como solução para problemas sociais.

 “As janelas gradeadas nas periferias e os condomínios que muram ruas – até então – públicas em bairros de classe alta se irmanam na percepção do espaço público como ambiente hostil e cheio de perigos. A desigualdade como forma de controle de recursos humanos no país promoveu esse tipo de ideologia, que não por acaso acaba por gerar padrões de comportamento em âmbitos distintos, desde consumo – vide os shoppings – até educação – como universidades públicas muradas e de acesso restrito”, aponta ele.

 “Não é surpresa, então, o uso de recursos discursivos com evocação de [expressões como] ‘muralha’ ou ‘cercas’ para criar uma cisão fundamental entre quem é visto como cidadão e quem é visto como ameaça potencial”, complementa Tarcízio.

 

A articulação entre os programas policialescos e as tecnologias de vigilância

 Uma das principais narrativas de produção e legitimação dos discursos de ódio contra as populações vulnerabilizadas, os programas policialescos têm relação intrínseca com a cada vez maior utilização de tecnologias de vigilância na segurança pública.

 Caracterizados pelo acompanhamento de casos policiais, pela superexposição da violência e pela violação de uma série de tratados internacionais e legislações brasileiras, esses programas – que estão presentes tanto em redes nacionais de TV e rádio quanto em emissoras locais – comumente são espaços de defesa de medidas como a redução da maioridade penal, o encarceramento em massa, a pena de morte e o justiçamento “com as próprias mãos”.

Nas eleições municipais de 2020, conforme levantamento realizado pelo Intervozes, pelo menos 10 candidatos a prefeito ou vice, de oito partidos diferentes, tinham algum tipo de vínculo com programas policialescos (apresentadores, repórteres e ex-apresentadores). Do mesmo modo que os prefeitos empossados em janeiro de 2021, esses candidatos também defenderam propostas que reforçam a vigilância e o punitivismo.

 No entendimento de Tarcízio Silva, os programas policialescos se pautam no desrespeito aos direitos humanos e reforçam o imaginário carcerário e punitivista. “Por essa lente, podemos entender, por exemplo, como nas principais cidades do país há sempre o espectro – por vezes realizado – da eleição para o Executivo de apresentadores de tais programas. A constante enunciação de discurso violento contra parte historicamente vulnerabilizada da população os posiciona como líderes por enunciarem o que parte das classes em posições de poder – absoluto ou relativo – são sociabilizadas desde cedo a acreditar”, avalia.

O pesquisador da UFABC chama a atenção para a gravidade desses programas como definidores de diferentes níveis de cidadania. “Ao performar diariamente a relação entre cidadãos-consumidores, de um lado, e de párias indesejáveis, de outro, os programas policialescos fazem a manutenção da estratificação social entre humanidades diferenciais”, salienta – referindo-se aos tratamentos distintos dispensados por essas narrativas, a depender, por exemplo, da raça ou do local de moradia das pessoas retratadas.

 

Na mesma perspectiva, Mariana Gomes destaca que “as imagens exaustivas de violência veiculadas pelas equipes desses programas são mais uma camada da banalização da vida que jovens negros, principalmente das periferias, travestis e transsexuais em situação de rua e mulheres vítimas de violência doméstica já passam em serviços de saúde e nas delegacias. É a comunicação e a tecnologia em desserviço à vida”.

 

Notas

i O levantamento aqui apresentado baseia-se em pesquisa realizada nos programas de governo de todos os prefeitos eleitos nas capitais do país em novembro de 2020 e empossados em 1º de janeiro de 2021, disponibilizados no site do Tribunal Superior Eleitoral: https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/. Considerando o volume de material e o fato de muitos programas serem amplos nas suas temáticas, a metodologia empregada foi a de pesquisa a partir de 10 expressões-chave que se aproximam do objeto investigado: “Reconhecimento Facial”; “Inteligência Artificial”; “Vigilância”; “Videomonitoramento”; “Monitoramento”; “Drone”; “Câmera”; “Vídeo”; “Dados”; “Tecnologia”.

ii Os prefeitos defensores dessas medidas estão em nove partidos diferentes, entre os diversos espectros ideológicos da política brasileira: PSDB (4 prefeitos); DEM (3 prefeitos); MDB (3 prefeitos); PP (2 prefeitos); Republicanos (1 prefeito); PSD (1 prefeito); Avante (1 prefeito); PDT (1 prefeito); PSB (1 prefeito).

iii Alguns exemplos são Big Brother Watch e Liberty Human Rights, ambas na Inglaterra; a campanha Ban Facial Recognition, nos Estados Unidos; a Internet Freedom Foundation, na Índia; e o projeto Panóptico, no Brasil. Recentemente, em uma carta aberta, mais de 2 mil matemáticos dos Estados Unidos pediram ao conjunto dos profissionais da área que não colaborem com tecnologias de informação utilizadas por órgãos de segurança pública e exigiram que qualquer tecnologia para esse fim passe por uma auditoria pública.

iv Ainda que a formulação desse conceito se dê a partir da investigação de estratégias mais recentes de empresas de tecnologia – como a extração de dados e a respectiva análise, a personalização e customização de serviços e o mapeamento de usuários de modo a alcançá-los com maior eficácia –, vale ressaltar que as suas bases foram constituídas ainda na década de 1970, quando as tecnologias da informação e comunicação passaram a cumprir, de modo crescente, um papel determinante na estrutura econômica em nível mundial e na mediação das relações sociais.

v Em 13 de janeiro de 2021, após complicações da contaminação por covid-19, o prefeito Maguito Vilela faleceu. Com isso, Rogério Cruz, eleito como vice, assumiu a Prefeitura de Goiânia.

Paulo Victor Melo, jornalista, doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas, integrante do Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil.

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