Por Rafa Santos

O espancamento promovido por seguranças brancos de uma unidade do Carrefour em Porto Alegre no dia 19 de novembro de 2020 — véspera do feriado do Dia da Consciência Negra — contra João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, um homem negro, resultou na morte dele. As imagens chocaram o país.

O episódio motivou também a instauração de inquérito para apurar racismo estrutural na segurança privada, além de projeto de lei criminalizando conduta de agente público ou profissional de segurança privada motivada por discriminação ou preconceito de qualquer natureza — atualmente, aguardando parecer na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.

João Alberto Silveira Freitas foi espancado e morto por seguranças de unidade da rede de supermercados Carrefour em Porto Alegre
Reprodução

Também gerou uma ação coletiva sem precedentes no Judiciário brasileiro e levantou o debate sobre direitos difusos. Um dos pontos centrais do debate é o pagamento de honorários aos advogados de entidades civis que atuam em ações coletivas.

Em julho deste ano, o juiz João Ricardo dos Santos Costa, da 16ª Vara Civil de Porto Alegre, determinou que o Carrefour pague R$ 3,45 milhões a título de honorários aos advogados do Educafro e do Centro Santo Dias. As duas entidades representam movimento negro envolvidas no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), que fixou o pagamento de R$ 115 milhões pela rede.

Na decisão, o magistrado aplicou o entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “as empresas com forte potencial econômico têm capacidade de contratar os melhores advogados para atuarem nos tribunais e patrocinarem uma defesa efetiva como é desejável”. “O mesmo deve ser garantido aos que defendem os interesses das populações prejudicadas com as violações postas no Judiciário.”

O escritório Márlon Reis & Estorilio Advogados Associados, que representa essas organizações sociais de combate ao racismo apresentou embargos de declaração da decisão para que o valor fixado seja entre 10% e 20% do valor da ação.

Apesar do embargo, o advogado Márlon Reis disse acreditar que a decisão é um divisor de águas na advocacia social no Brasil. “Acredito que fizemos história. O termo de ajustamento de conduta tem muitas obrigações de fazer do Carrefour e, apesar de discordamos do valor, a fundamentação da decisão do juiz é fantástica. Na minha opinião, deveria ser lida em todas as faculdades do país para as pessoas entenderam o que é o Direito coletivo e o papel do advogado nesse tipo de ação”, explica.

Ele diz que ações como a movida contra o Carrefour são importantes para garantir direitos coletivos, mas também para atrair talentos para a advocacia social. “Nos Estados Unidos existem bancas especializadas em direitos difusos. Se esse tipo de cultura do Direito coletivo se consolidar no Brasil, teremos mais proteção aos direitos das pessoas e irá diminuir o grande número de ações individuais do Poder Judiciário. A alta litigância sempre aponta para grandes prestadores de serviço. A ação coletiva é o meio mais poderoso de solucionar conflitos em massa”, sustenta.

Além da ação movida contra o Carrefour, Reis ajuizou outra ação coletiva frente a outro caso rumoroso de racismo, desta vez contra a rede atacadista Assaí, também representando a Educafro e o Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo.

O episódio que provocou a demanda aconteceu na última sexta-feira (6/8) na cidade de Limeira, no interior de São Paulo. Na ocasião, Luiz Carlos da Silva, 56, um homem negro, estava saindo de uma unidade da rede quando foi acusado por um segurança de ter furtado itens do supermercado. Ele foi cercado pelos funcionários da empresa e obrigado a tirar a roupa na frente de outros clientes.

Na ação ajuizada nesta quarta-feira (11/8), as entidades argumentam que a abordagem foi ilícita e vexatória e que também atingiu a população negra e o povo brasileiro.

Homem negro foi acusado de furto e obrigado a tirar a roupa na frente de outros clientes em unidade da rede Assaí em SP
Reprodução

“Esse caso em particular apresenta uma situação que não houve lesão física, tortura ou morte. Ele se aproxima mais do que acontece no cotidiano dos supermercados. Existe muito racismo e violência moral. Pessoas sendo seguidas. Felizmente não houve tanta barbaridade como no caso do Carrefour, mas a gravidade dele se revela no cotidiano. Sobre como as pessoas negras são suspeitas. Pode ser um caso exemplar para ajudar o meio supermercadista a refletir”, explica.

Honorários
A questão dos honorários advocatícios em ações coletivas ainda é controversa. Segundo Reis, o Supremo Tribunal Federal já tem o entendimento consolidado sobre a questão, mas o Superior Tribunal de Justiça ainda é reticente na aplicação do entendimento do STF.

“O STJ se recusou a reconhecer a inconstitucionalidade da delimitação espacial da eficácia erga omnes das decisões e o Supremo foi lá e modificou e declarou a norma inconstitucional. Essa dificuldade é fruto dessa cultura do direito individual”, explica.

Sobre essa questão, o STF entende que os efeitos de decisão em ação civil pública não devem ter limites territoriais. Caso contrário, haverá restrição ao acesso à justiça e violação do princípio da igualdade.

O entendimento foi firmado pela maioria do Plenário do Supremo Tribunal Federal no último dia 4 de março, ao declarar a inconstitucionalidade do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985).

O relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, afirmou que, a partir da Lei da Ação Popular (Lei 4.717/1965), começou um processo de construção legislativa e jurisprudencial, intensificado pela Constituição de 1988, para garantir maior efetividade ao sistema protetivo de direitos difusos e coletivos.

Segundo o ministro, a redação do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública ocorreu na contramão dos avanços na proteção de direitos metaindividuais. “O juiz é ou não é competente para decidir uma questão? Se sim, a partir da decisão e da coisa julgada, os efeitos e a eficácia da decisão não se confundem com a limitação territorial. Os efeitos têm a ver com os limites da lide. Não se pode confundir limitação territorial de competência com os efeitos”, apontou. Seu entendimento prevaleceu.

Ricardo de Barros Leonel, mestre, doutor e livre docente pela USP (Universidade de São Paulo), explica que a controvérsia existe porque a lei de ação civil pública nesse ponto não é muito clara. “O regramento estabelece que a entidade autora não é condenada nos encargos financeiros de processo salvo se ela atuar de má-fé, mas ela não afirma que deve haver condenação por parte do réu na ação coletiva quando ela é julgada procedente com relação aos honorários dos advogados”, explica.

Leonel lembra que no sistema processual brasileiro o recebimento de honorários é um direito do advogado e não da parte. “Acredito que a ação coletiva julgada procedente movida por uma associação deve gerar também imposição de responsabilidade pelos encargos financeiros do processo para o réu. Nisso se inclui despesas, honorários periciais e também honorários dos advogados da associação autora. Isso não se aplica ao Ministério Público, já que o MP por expressa determinação constitucional não pode receber honorários”, afirma.

O especialista diz acreditar que ações como a da Carrefour são positivas porque servem como estímulo para que advogados se especializem e deem um enfoque social para sua atuação.

Luís Felipe M. D. de Queiroz, especialista em Direito Civil e Administrativo do Rubens Naves Santos Jr. Advogados, por sua vez, diz que é preciso inicialmente pensar em hipóteses de escritórios de advocacia que façam parcerias com entidades de pouca representatividade só para entrar com uma ação coletiva para perseguir honorários advocatícios. “Não é o caso das ações movidas pela Educafro e o Centro Santo Dias, que têm um trabalho muito bonito no combate ao racismo estrutural”, ressalva.

Queiroz defende que uma solução possível para os honorários seria destinar um valor da condenação a título de indenização direcionada especificamente a entidades autoras, não a título de honorários advocatícios, mas a título de reparação, para estimular a atividade dessas entidades sociais.

“Vemos pelo mundo inteiro que a ação coletiva é uma das melhores soluções para acionar o Judiciário em questões em que o poder público é omisso ou em casos em de abuso de direitos por parte de empresas. O fortalecimento de ações movidas por essas entidades é fundamental para darmos o próximo passo como sociedade”, diz.

Jurisprudência
Márlon Reis defende que as ações coletivas podem diminuir a quantidade de processos que abarrotam o Poder Judiciário. Em relação ao direito do consumidor, a grande dificuldade, segundo ele, é jurisprudencial.

“Quando se trata de relações de consumo a jurisprudência atual fixou um entendimento muito restritivo. Nos Estados Unidos, uma class action pode ser ajuizada por um pequeno número de pessoas, mas atinge todos aqueles que tiveram seus direitos violados. Um consumidor que foi atingido por uma prática abusiva é alcançado por essas ações coletivas e recebe um cheque estabelecido pela Justiça pelo correio. O modelo funciona bem”, diz.

O modelo norte-americano pode contribuir bastante para que as ações coletivas avancem no Brasil. Essa é a opinião de Bernardo Viana, sócio de compliance e governança corporativa do escritório Almeida Advogados, com expertise em investigações internas. Ele acredita que a a combinação do modelo de class action com métricas de ESG já seria um grande incentivo.

“Não podemos focar só no contencioso: temos que aproveitar a expertise e a metodologia já sendo desenvolvida por executivos de compliance no Brasil. Temos hoje capacidade para endereçar e prevenir, ainda que internamente, questões sensíveis e tão caras à nossa sociedade hoje”, explica.

Já Leonel diz que é preciso avançar em três pontos. “É preciso haver uma comunicação eficiente da existência dessas ações coletivas, a suspensão de ações individuais e interrupção da prescrição para os indivíduos lesados. Porque, do contrário, eles não têm segurança de que vão esperar muito tempo em um processo coletivo para ser efetivamente tutelados. O sistema de processo coletivo tem potencial para cuidar da massa de processos, mas é necessário algum aperfeiçoamento no sistema vigente”, diz.

O especialista diz que seria possível contornar entraves por meio de interpretação jurisprudencial, mas existe ainda alguma resistência. “Talvez seja preciso alguma mudança legislativa. Um bom projeto é o PL 1.641/2021, que oferece boas soluções para esses problemas que mencionei. Notificação para os interessados, suspensão de processos individuais e interrupção da prescrição. Sem isso, é muito difícil tirar do processo coletivo todo o seu potencial”, sustenta.

O projeto de lei foi apresentado pelo deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP). O texto foi elaborado por uma comissão de juristas do Instituto Brasileiro de Direito Processual.

Clique aqui para ler os embargos dos honorários do caso Carrefour
Clique aqui para ler a inicial da ação coletiva contra a rede Assaí

 

Fonte: Revista Consultor Jurídico.

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