Por Samuel Vida*
Aprovação do financiamento a candidaturas negras provocou a guinada de autodeclaração racial, gerando uma transracialização sem precedentes.
Ao longo da formação institucional do Brasil a participação política dos negros nas estruturas do Estado experimentou diversas exclusões dos processos eleitorais e das possibilidades de agenciamento de interesses e políticas públicas. A reação e permanente mobilização negra para o exercício dos direitos políticos produziu um paradoxo: a cada avanço conquistado desenvolveram-se mecanismos de esvaziamento, bloqueio e cooptação.
Seguindo a agenda das elites, o Estado buscou “criar” a nação, a partir da escolha do homem branco como o protótipo do cidadão, excluindo negros e indígenas do acesso aos direitos básicos, e definiu a branquitude como perfil para o exercício do poder político, monopolizando a representação das funções do Legislativo, Executivo e Judiciário. Fundavam-se as bases para a Racistocracia como estrutura político-jurídico-institucional que vertebra a organização e o funcionamento do Estado e da Democracia à Brasileira.
A Racistocracia, como sistema político, se expressa historicamente de forma maleável e dinâmica, comportando flexibilidades e alterações morfológicas, desde que se mantenha intacto seu objetivo fundamental: o controle do Estado e dos recursos materiais e simbólicos nas mãos da minoria branca.
No Império, a escravização de parcela da população negra, as limitações impostas aos libertos e o critério censitário da renda excluía da participação política a maioria negra. Em 1881, as reformas eleitorais introduzidas pela Lei Saraiva, instituíram as eleições diretas, mas proibiram o voto aos analfabetos, mantiveram o voto censitário, reduzindo drasticamente o universo de eleitores. Esta reforma aumentou a exclusão negra, às vésperas do fim da escravidão, e autorizou a elegibilidade de imigrantes brancos, especialmente comerciantes e pequenos industriais.
A República manteve a proibição do voto do analfabeto, consagrando-a como norma constitucional de exclusão racial que sobreviveu nas constituições republicanas que precederam a atual. A reserva dos cargos e funções públicas aos bacharéis, combinada com o discurso da “meritocracia”, completou a exclusão racial dos negros. Em 1937, desferiu-se outro duro golpe através da proscrição da Frente Negra Brasileira, recém constituída como partido político de expressão nacional. O golpe de misericórdia foi dado pela consagração do “mito da democracia racial”, celebrado pela direita e pela esquerda, interditando qualquer debate público sobre racismo e desigualdades raciais, desqualificando as iniciativas de resistência e denúncia como ilegítimas e importadoras de ideias alienígenas.
Por décadas, as raras representações parlamentares negras dispersas pelo país e isoladas no interior das várias agremiações partidárias, sobreviveram por agendas supra raciais, a exemplo das mobilizações sindicais e pela educação. Desde cedo, instituiu-se o silenciamento da denúncia das desigualdades raciais como preço para a rarefeita permeabilidade e limitada integração de negros na estrutura política. A presença negra nas câmaras municipais, desacompanhada da agenda antirracista, é o mais evidente exemplo deste tributo.
A reorganização dos Movimentos Negros, nos anos 70, em diversas frentes, a exemplo dos Blocos Afro em Salvador, com a fundação do Ilê Aiyê, o movimento Black Rio, a fundação da Escola de Samba Quilombo, no RJ, o Grupo Palmares, em Porto Alegre, a fundação do MNUCDR etc, gerou novo ciclo de participação política negra. Integrados à agenda de democratização que derrotou a ditadura militar, recolocaram a participação negra na política institucional como tema relevante, com agenda antirracista, possibilitando a eleição de Abdias Nascimento, na legislatura que antecedeu a Constituinte, além de diversas candidaturas à Constituinte nas eleições de 1986.
Em 1986, no Rio Grande do Sul, Alceu Colares foi eleito governador, assim como Albuíno Azeredo, no Espírito Santo. Verificou-se uma inusitada presença de parlamentares negros na Assembleia Constituinte, vocalizando as agendas negras e incorporando uma ousada plataforma do Constitucionalismo Negro à CF de 1988.
Na década seguinte, Abdias Nascimento, Benedita da Silva e Marina Silva ocuparam o Senado Federal e lideranças negras exerceram mandatos de Dep. Federal, a exemplo de Domingos Dutra, Paulo Paim, Luiz Alberto, Ben-Hur, Carlos Santana, Vicentinho, Edmilson Valentim. Estes mandatos filtraram para o interior do parlamento parte da agenda antirracista. Por um breve momento, o monopólio racial da representação política parecia abalado e a Racistocracia, finalmente, seria posta à prova.
Contudo, para compreender as conquistas negras nas últimas décadas, e os avanços nas políticas públicas e na legislação, é necessário olhar para fora do espaço institucional e partidário. Os Movimentos Negros tensionaram a cena política desde fora com agendas antirracistas que enfrentaram resistências de todos os atores do espectro ideológico e partidário.
A política de cotas nas universidades, por exemplo, mobilizou a reação contrária da direita e da esquerda, em seus momentos iniciais, assim como o debate do Estatuto da Igualdade Racial rachou todas as bancadas partidárias no legislativo. A conquista destas políticas se desenvolveu num processo conturbado, com avanços e perdas, sendo inconsistente qualquer versão que atribua a este ou àquele governo a sua implementação.
Ainda hoje, temáticas como genocídio negro, titulação das terras quilombolas, combate à seletividade racial do sistema penal e super encarceramento, aplicação das ações afirmativas, esbarram em resistências de todos os partidos e seus governos. Diante do sólido pacto narcísico da branquitude, que unifica direita e esquerda em torno dos privilégios raciais, a autonomia negra e sua capacidade de proposição programática específica tem sido a alavanca para as conquistas de ampliação de direitos.
Em mais um lance de autonomia radical dos Movimentos Negros, foi aprovada a regra de democratização do financiamento das candidaturas, pelo TSE, confirmada pelo STF. A alteração da distribuição desigual dos recursos eleitorais atinge um dos pilares da Racistocracia, pois o monopólio dos recursos financeiros e o direcionamento para as candidaturas brancas transformou a participação das candidaturas negras em coadjuvantes ou figurantes na encenação da democracia racial.
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Paralelamente às conquistas, as reações da Racistocracia devem ser mapeadas. Em resposta ao aumento das candidaturas negras e a afirmação de campanhas de voto racial, a elegibilidade de representações negras experimentou deslocamentos programáticos que esvaziaram as agendas antirracistas. Negros evangélicos conservadores, sindicalistas, sem-terra e, mais recentemente, expoentes da agenda ultraconservadora do populismo penal, ocuparam os espaços de representação construídos difusamente pela militância negra nas últimas décadas, desacelerando as pautas antirracistas e o protagonismo autônomo.
As tentativas de disputa do Executivo fracassaram já nas escolhas internas dos partidos ou se limitaram a candidaturas tuteladas, algumas vitoriosas, como a de Celso Pita, em São Paulo. A participação efetiva no Executivo esteve confinada em órgãos “especializados” que cumpriram um papel ambíguo: representavam uma conquista de institucionalização da agenda antirracista; ao mesmo tempo, desprovidos de estrutura material e orçamentária, transformavam-se em álibis para os governos, além de expressarem a única forma de presença negra nas gestões.
No Judiciário, a demora na aplicação das ações afirmativas e a preservação do bacharelismo e elitismo, em suas formas racializadas, consolidou seu papel de fiador da Racistocracia. O Judiciário brasileiro é co-autor das principais violências raciais: o genocídio negro e índigena, o super encarceramento, a criminalização dos movimentos sociais, as fraudes aos direitos constitucionais dos quilombolas e indígenas etc.
Na atual conjuntura, verifica-se uma reação da Racistocracia através de duas manifestações aparentemente contraditórias, mas, no fundo, complementares.
Por um lado, crescem os questionamentos às conquistas negras e retoma visibilidade o discurso público da democracia racial, embalado pela hegemonia neoconservadora instalada no poder federal, que insiste na negação da existência do racismo e no descabimento de políticas reparatórias.
Por outro lado, a aprovação do financiamento para candidaturas negras provocou uma guinada na autodeclaração racial, à esquerda e à direita, gerando uma transracialização eleitoral sem precedentes. Prefeitos e vereadores com mandatos, além de velhos candidatos conhecidos do eleitorado modificaram sua identificação racial. Pela primeira vez na história eleitoral, teremos nominalmente uma maioria de candidaturas negras.
Esta prestidigitação de transracialização eleitoral provocará um refluxo na participação eleitoral negra identificada com agendas antirracistas? As candidaturas negras que não debatem os temas do racismo, como o genocídio, o super encarceramento e as gritantes desigualdades raciais reforçam a Racistocracia? As candidaturas com vínculos com os Movimentos Negros devem apresentar discursos contidos e os lugares comuns da “união de todos”, da “capacidade técnica de gestão” etc numa concessão à etiqueta da cordialidade da Racistocracia, movidas pela expectativa de ampliação da aceitação eleitoral? Sem autonomia radical é possível deter e modificar a Racistocracia?
Samuel Vida
Professor de Direito da UFBA, Coordenador do PDRR – Programa Direito e Relações Raciais, Mestre em Direito, Estado e Constituição – UnB, Doutorando em Direito, Estado e Constituição – UnB.
Fonte: Carta Capital.