Por Tatiana Lagôa

Hoje, eu quero propor um debate do tipo peito aberto sobre um tema em que não existe consenso no Brasil: em um país com tanta miscigenação existe o conceito de “mais preto” ou “menos preto”? Sim e não. Sim, porque de fato há diferenças de tom de pele, e isso impacta diretamente o nível de preconceito sofrido. E não, porque o racismo não poupa negros de pele menos retinta (mais clara). Portanto, a luta precisa abarcar todo mundo que sofra com o estigma.

À primeira vista, pode parecer um debate sem razão. Mas, para quem acompanha mais de perto as discussões raciais, ele vai fazer sentido, principalmente porque estamos em um país onde as pessoas não têm tanta consciência de coletividade. Diferentemente dos Estados Unidos, onde os negros se unem em prol de conquistas sociais e políticas – eles tiveram um presidente da República negro –, por aqui, temos tantas divisões que a visão de grupo fica muito comprometida.

Aí você pode se perguntar sobre as divisões a que estou me referindo. Para começar, até a definição de quem é negro no país é enviesada. Sabemos que 56% da população se autodeclara negra (e aqui estão incluídos os pretos e pardos). Mas muitos que poderiam estar nessa estatística não sabem disso. Sabe aquelas pessoas que são chamadas de “mulatinhas”, “moreninhas”, “cor de jambo”? Elas são aquelas que não têm a cor de pele tão clara ao ponto de serem brancas, mas que, por serem frutos de relacionamentos inter-raciais, têm a cor de pele menos retinta do que de outras pessoas que se autodeclaram pretas. Muitas delas passam uma vida inteira acreditando que não são negras. Outras se descobrem depois de muita reflexão, convívio com quem entende do assunto e estudo, já na fase adulta. Mas, mesmo assim, ninguém pode dizer que elas não são negras. Até porque, cada um sabe a dor e a delícia de ser quem é. E, por mais que o racismo seja camuflado no país do Carnaval, ele não poupa quem não se autodeclara preto. Dizer que é branco não torna ninguém branco.

Aí a gente entra em outro ponto que piora o cenário. Óbvio que existem pessoas brancas que se autodeclaram negras em contextos em que elas poderiam se beneficiar de alguma forma da situação, como, por exemplo, em universidades em função de cotas raciais. É aí que entra a importância das bancas verificadoras com um trabalho muito complexo de avaliação. E é aqui que o debate fica mais tenso porque pessoas negras de pele um pouco mais clara acabam tendo suas negritudes questionadas em função do erro de brancos. São vitimadas mais uma vez.

É mais ou menos assim: o chamado pardo no Brasil, mesmo que ele não se veja como negro, ainda não tem o mesmo espaço que pessoas brancas. Ele pode até ter um acesso a portas que são mais cerradas para negros de pele escura. Só que não entra com facilidade em vários espaços e não está em pé de igualdade com brancos. Trazendo para a prática, eu diria que o chamado “moreninho” de boné tem muito mais chances de passar por batidas policiais e levar pessoas a atravessar a rua à noite do que um branco com o mesmo estilo. E, já que aqui a ideia é o que os jovens chamam de “mandar a real”, você nem precisa usar o politicamente correto: “No Brasil isso não acontece”. Sabemos que ocorre diariamente.

Então, dito isso, eu afirmo com toda certeza que a luta tem que ser pela igualdade independentemente do tom da negritude. E o mais importante: é preciso haver união, e todo mundo precisa saber o que de fato é. Neusa Santos Souza, no livro “Tornar-se Negro”, disse muito bem que se ver como negro no Brasil é um ato político. É, apesar de uma sociedade que tenta desqualificar pessoas como você, mesmo assim, você bater no peito e dizer: “Sou o que sou e não vou aceitar menos do que tudo”. Dói, mas liberta.

E, quando alguém vier com o “medidor de negritude”, você, que é negro de pele menos retinta, pode sentar, pegar um café e mostrar cada cicatriz que você carrega das “pancadas” levadas da vida em uma sociedade racista. Dê um abraço nesse “fiscal” e o chame para a luta porque exército só é forte com soldados unidos.

 

Tatiana Lagôa

Graduada pela PUC Minas, fez a pós-graduação “O jornalista Latino Americano como agente e líder social”, no Instituto Tecnológico e de Estudos Superiores de Monterrey, no México. Já atuou nas editorias de Economia, Política e Cidades, com passagem pelos jornais Hoje em Dia, Diário do Comércio, além de O Tempo e rádio Super Notícia. Integrante da lista dos 550 jornalistas mais premiados do Brasil, de acordo com o ranking “J&Cia dos Mais Premiados da Imprensa Brasileira”, de dezembro de 2019. Atualmente, é editora de Cidades, colunista responsável pela Coluna RepresentAtividade e integrante do Programa Interessa da Rádio Super.

 

Fonte: O Tempo.

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