Por Verioni Ribeiro Bastos

Descoberta de conjunto monumental de arte indígena na Amazônia, com pinturas de 20 mil anos, revela quanto é preciso descobrir da riquíssima história pré-colonial da América — e como o eurocentrismo cega a ciência para isso.

Uma palavra antes do início

A marcha da perseguição, invisibilização e etnocídio aos povos originários continua em curso sustentada pelo projeto de colonialidade eurocêntrico. Vigente com seus tentáculos longos e pegajosos, sempre a se fixarem no inconsciente coletivo. A colonialidade eurocêntrica age de forma subliminar através de reforços por meio de elementos semióticos dirigindo percepções para a construção de um amalgamado de noções com aparência verossímil.

Recentemente esse esforço hercúleo de invisibilidade e inferiorização, através de hierarquizações forçadas da arte e das práticas espirituais dos Povos Originários, apresentou-se na manchete da History sobre Chiribiquete onde se lê: “Chiribiquete: Amazônia abriga a ‘Capela Sistina’ da pintura rupestre”.

Vamos nos deter somente na própria matéria da History e fazer um pouco de análise etno-histórica-arqueológica sobre esse tratamento colonializante e eurocêntrico dado pela revista e pelos próprios pesquisadores. Estes em nenhum momento se referem aos nativos deixando inferir-se ter sido por obra e graça de um esforço próprio ou de uma alétheia que vieram a encontrar Chiribiquete.

Chiribiquete ou Colina onde se desenha, no idioma construído e usado até hoje pelos povos originários, o Karijuna, está encravada no seio da Amazônia com, até agora, 75 mil pinturas rupestres catalogadas e, segundo a arqueologia clássica, revelam a diversidade biológica da região. Importante ressaltar que a área de conhecimento “Arqueologia” hoje abriga diferentes formas de fazer Arqueologia. A supracitada está ligada à maneira etimológica apontada para o estudo do conhecimento do passado histórico oitocentista, baseado em vestígios materiais e servis ao colonialismo e, até hoje, ao processo colonializante.

Todavia, para os, realmente, interessados em compreender as práticas dos povos originários, cada pintura, cada grafismo, cada conjunto desses elementos está para além de uma representação do meio ambiente e seus elementos. Animais e plantas e os Povos Originários – “diversidade biológica” – são um só ser.

Esta afirmação parte de dois pilares incompreendidos e repudiados pelos acadêmicos clássicos, a saber: os ensinamentos dos Bidzamus – os que seriam os pajés para os Kariris – ensinam que nós somos um só ser: os Povos Originários e toda a Mãe Terra. Isso não significa uma vida estática, imóvel, mas sim, o contrário. É a condição de tudo estar reunido que permite a transformação. Entretanto, a academia resiste em aceitar os Bidzamus e as Troncos-Velhas (os) como referências nos trabalhos acadêmicos.

Para não fugir às exigências acadêmias, cito um segundo pilar: Parmênides – surgido muito tempo depois dos Povos Originários de Pindorama – e, que para além de um filósofo abordado analiticamente, tinha suas reflexões estreitamente ligadas ao que hoje é chamado de mitologia grega. Sabemos que os gregos se relacionavam com seus espíritos ancestrais e seus pensadores eram considerados como conectores entre os planos transcendente e imanente.

No texto O poema de Parmênides encontramos a narrativa onde as Filhas do Sol o levam à Deusa das Revelações (I, 8-22). Lá, Parmênides, então, encontra-se com a compreensão do Ser que “é todo pleno do que é. Por isso é todo contínuo: pois ente a ente acerca” (VIII, 24 e 25). “pois de todo lado igual a si, se estende nos limites por igual” (VIII, 49).

Parmênides vai ao encontro do pensamento dos Bidzamus – posto estes existiam bem antes do filósofo – quando indica a ilusão de muitos pensarem existir em uma bolha individual capaz de manter o isolamento entre os entes em suas inter-relações societais. Nessa direção, Chiribiquete guarda expressões do Ser como conjunto de entes, ressaltando que fazemos aqui um esforço de interpretar os ensinamentos dos Bidzamus, como também, dos autores das pinturas rupestres.

A mitigação pela academia

Chiribiquete é fruto da compreensão dos Povos Originários de que o humano, a terra, as matas e os sencientes são um só. Deixaram isto expresso nessa herança cosmológica e cosmogônica. Suas pinturas rupestres tiveram suas datações estimadas em 20 mil anos… 20 mil anos. Estética impecável – aceitando usar aqui o pensamento do invasor – técnicas avançadas de produção configuradas na conservação e durabilidade, domínio estratégico do território e do espaço geográfico. 20 mil anos!

O teto da Capela Sistina foi pintado por Michelangelo Buonarroti – nascido em 1475 – e levou apenas quatro anos para ser terminado – 1508-1512 – composto por nove painéis com representações da busca humana pela salvação a partir da visão bíblica católica-judaica. Mundo este tomado pela manipulação de dominadores para obtenção de poder mediante um sistema de castigo e recompensa de acordo com os interesses de uma elite eurocêntrica dominante.

Essa elite lançou suas raízes profundas na mentalidade dos povos ocidentais e estendeu seus tentáculos por todos os campos da sociedade, principalmente na educação, com o projeto de limitar e estreitar a capacidade crítica e o pensamento livre dos povos. A manchete da History é um claro exemplo dessa realidade vigente até os dias atuais.

Dessa forma, perguntamos: como uma arte, expressão cosmológica e cosmogônica de gerações com heranças milenares, encontrada organizada e compartida através de um sistema de códigos, cujos são, alguns, para conhecimento geral e outros, evidentemente, com mensagens para iniciados, pode ter como referência arte horror vacui, com nove estórias, em pouco mais de 1000m² tendo, segundo alguns autores, trezentas representações – um trabalho metaforicamente, quase simplista, dada a comparação feita pelos acadêmicos – por exemplo, foram revisados em Chiribiquete 36 conjuntos pictográficos em uma área aproximada de 200m².

Sob esses pilares afirmamos a impossibilidade do Teto da Capela Sistina ser referencial para Chiribiquete. A autenticidade de Chiribiquete ultrapassa e supera a prisão do enquadramento dado a necessidade de impressionar pela exterioridade e aspectos a serem julgados por quem se erigiu erudito.

Portanto, demonstramos a mão pesada do eurocentrismo no processo colonizante insistente e tenaz no projeto de mitigação da herança ancestral dos Povos Originários e do contínuo etnocídio cujas bases são claramente identificadas aqui, a saber: a imposição de uma escala hierarquizante onde sempre se busca inferiorizar os Povos Originários e a consequente invisibilização pela semiótica e o discurso construído.

Uma palavra antes do fim

“É um lugar absolutamente transcendente devido ao seu significado simbólico e cosmogônico, que talvez remeta aos primeiros momentos na América. Os pesquisadores estimam que alguns dos desenhos possam ter sido feitos há cerca de 20 mil anos. Segundo o especialista, o apelido de ‘Capela Sistina’ é perfeito para definir o local. Isso porque os desenhos que estão ali apresentam grande qualidade e requinte, além de ter um caráter sagrado”1.

O anacronismo e a incoerência – para não dizer empáfia, postura egóica e colonializante – da “academia” travestida pela semiótica do texto, na direção de mitigar e invisibilizar, nas próprias palavras dos pesquisadores, a “grande qualidade e requinte” das pinturas rupestres dos Povos Originários é violenta e flerta com o neofascismo que busca a re-implantação de formas de eugenia no próprio sentido de segregação hierárquica.

Afirmamos ser a Capela Sistina a expressão de imagens tradicionais, uma arte manipulada pela idealização dos invasores dominantes não passando de uma branca sombra pálida, como diria Lygia Fagundes Telles, de Chiribiquete. Entretanto, podemos dar as expressões artísticas em questão, no máximo, a possibilidade de serem formas de expressões artísticas, não contemporâneas, mais dotadas de sincronicidade no tempo e no espaço, segundo Jung (1973). De toda forma, jamais Chiribiquete poderia ser mitigada a essa comparação sensacionalista da matéria.

Enfim

Repousamos em Johannes Fabian nosso terceiro pilar: a coetaneidade; para que o Outro, citado por este autor, não seja exotizado como um objeto naturalizado. Mas, sim compreendido a partir de uma etnografia que não anule e não contorne o pressuposto do Tempo intersubjetivo. Chiribiquete não está fora dos processos dinâmicos que regem as relações societais e só pode ser compreendida sem uma naturalização advinda da imposição de percepções semióticas hierarquizantes.

 

Fonte: Outras Palavras.

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