Por César Augusto Minto

A violência no campo não é ocasional, ocorre em quase todo o território, embora mais adensado em alguns estados e na Amazônia. Trata-se de fenômeno relativo à luta de classes, com forte protagonismo das elites que dominam o país desde sempre, explorando sua biodiversidade, suas riquezas minerais, seus recursos hídricos, entre outras.

 

Mais de três décadas após a promulgação da Constituição de 1988, o país ainda ostenta muitas chagas sociais: ausência de um projeto de nação soberana, parco saneamento básico, negligência com saúde e educação, racismo e machismo estruturais, falta da reforma agrária, entre tantas outras. Abordamos aqui apenas uma dessas feridas – a violência no campo.

Apesar de esforços dos setores democráticos da sociedade, ainda não se conseguiu que essa violência se torne um problema nacional, que extrapole o contingente de pessoas e instituições defensoras de que a terra é de toda(o)s e que é preciso distribuí-la para propiciar vida, alimento, energia etc., promovendo bem estar social. E que não continue controlada por oligarquias que dela se apossaram e a exploram para a obtenção de lucro a qualquer preço.

Apenas a denúncia dessa violência não basta para superá-la. O combate a sua origem foge ao alcance de pessoas que lutam para aniquilar ou dirimir suas causas. Isso explica em parte a ocorrência de tantas mortes. São exemplos disso, no âmbito restrito, os assassinatos de Chico Mendes (1988) e de Dorothy Stang (2005); no âmbito mais amplo, os massacres de Eldorado dos Carajás (PA, 1996) e Pau d’Arco (PA, 2017). Essa situação precisa ter um basta.

Algumas características da violência no campo revelam que ela é difusa, política e simbólica, e segundo Tavares (2000, p.6), não raro contém “[…] alto grau de letalidade, contra alvos selecionados (organizações dos camponeses e trabalhadores rurais) e seus agentes são membros da burguesia agrária, fazendeiros e comerciantes locais, mediante o recurso a ‘pistoleiros’ e milícias organizadas.” E contribui para tanto o “aparelho repressivo estatal, comprovado pela frequente participação das polícias civis e militares”, além da omissão de membros do Judiciário, o que reforça o caráter de impunidade. Há ainda o raro acesso dessas populações a esse Poder, “resultando em uma descrença na eficácia da Justiça para resolver conflitos ou mesmo para garantir direitos constitucionais, como o direito da função social da terra.”

O Relatório do Ipea (2020, p. 7) relativo a essa injustiça e seu contexto esclarece que: “Desde o período colonial, instituições, formais e simbólicas, não apenas garantiram a exploração econômica do uso da terra e dos recursos naturais, como também moldaram as relações de poder, de concentração de propriedade e renda e de desprezo aos direitos de parcelas populacionais específicas, cujos efeitos perduram até os dias atuais.” Assim, resulta disso tudo a manutenção do status quo e a grande desigualdade vigente até hoje no país.

A contribuição de Mello (2018, p. 27) permite uma compreensão mais ampla do problema, que passa pela constatação de que “O Estado, o ‘mercado’ e outras tantas instituições que regem, organizam e dão significado às sociedades podem ser entendidos como criações históricas em que conjuntos de valores e estruturas formais e informais são arbitrariamente estabelecidos, resultando, na maioria das vezes, na exclusão deliberada ou não de certos grupos, demandas, valores ou estruturas.” Ainda segundo a autora, “A lógica que rege o estabelecimento das instituições pressupõe uma dinâmica de manutenção/reprodução ou de mudança/desconstrução da distribuição dos bens materiais e simbólicos existentes nas sociedades.” E, assim, fica patente “o papel central exercido por discursos, grupos, valores ou estruturas hegemônicas na criação de padrões de comportamento e de regras de inserção e exclusão.”

Igualmente esclarecedoras são as conclusões sobre a violência no campo contidas no Relatório do Ipea: “[…] o acirramento em torno das disputas fundiárias não está desvinculado dos inúmeros processos conflitivos e de subalternização de povos originários, comunidades tradicionais, pequenos agricultores e trabalhadores rurais enraizados em dinâmicas historicamente consolidadas de exploração econômica e social que caracterizam o país.” Além disso, o Relatório complementa que as condições socioeconômicas “são importantes para explicar a prevalência de crime e violência nos territórios.” (IPEA, 2020, p. 48)

A violência no campo não é ocasional, ocorre em quase todo o território, embora mais adensado em alguns estados e na Amazônia. Trata-se de fenômeno relativo à luta de classes, com forte protagonismo das elites que dominam o país desde sempre, explorando sua biodiversidade, suas riquezas minerais, seus recursos hídricos, entre outras. E pilham a maioria da população, que na estratificação social do Brasil corresponde a um conjunto de minorias, pois aqui, como afirma Rosa (2021, p. A2), “o conceito de minoria tem mais a ver com ausência de poder do que com quantitativo populacional.” E é recorrente a tentativa de nos fazer crer que tudo isso é natural.

Esse contexto político-legal cria uma pressão constante no campo, onde grupos étnico-raciais, minorias políticas e classes econômicas subalternizadas, como povos indígenas, população negra, sertanejos, pequenos agricultores e trabalhadores rurais, entre outros, se defendem – com raríssimas exceções, sem qualquer respaldo de Executivo, Legislativo e Judiciário – e padecem, individual e coletivamente. Essa tem sido a realidade da violência no campo no Brasil.

 

Isso posto, o que fazer?

O acompanhamento sistemático pode contribuir para identificar e delatar casos de violência no campo e também para repercutir as denúncias feitas por setores organizados da sociedade civil que combatem o problema, prestando-lhes apoio político e, se viável, também financeiro. Outra contribuição possível é a intervenção nos processos de elaboração e tramitação de projetos legislativos relativos ao tema, apoiando ações pertinentes e ou barrando intenções espúrias.

Por certo, é essencial o engajamento ou reforço das lutas pela reforma agrária, pela demarcação das terras indígenas e de quilombolas, pela viabilização da agricultura familiar e de pequena(o)s agricultora(e)s, por políticas de fixação de trabalhadora(e)s no campo, entre outras. Tudo isso sem descuidar da legalização que perenize tais iniciativas e reverta aquelas em contrário.

Cabe lutar pela revogação da Lei nº 13.901/2019, que transfere para o Ministério da Agricultura a identificação e demarcação de terras indígenas e autoriza: a mineração, o turismo, a pecuária, a exploração de recursos hídricos e de hidrocarbonetos nessas terras, entre outras medidas. Sua implantação contribuirá para ampliar os conflitos e realimentar a violência no campo.

É também urgente lutar para que não seja aprovado o PL 490/2007, que transfere a demarcação das terras indígenas concedida ao Executivo pela Lei n° 6.001/1973 – prerrogativa da Fundação Nacional do Índio (Funai) até 2019 – para o Congresso Nacional, sob a alegação de que se trata “de matéria que ultrapassa os limites da política indigenista e atinge interesses diversos”.

 

A “justificação” do PL 490/2007 cita esses interesses diversos: “[…] vemos, no cotidiano, que as áreas reivindicadas e que, por isso, são objeto de demarcação, envolvem interesses diversos, tanto públicos quanto privados.” Eis aí o cerne da questão: os interesses privados. Sempre eles. Ademais, a história fundiária do país explicita aonde as elites dominantes querem chegar.

 

Resta saber se os setores democráticos da sociedade estão dispostos e serão capazes de impedir que a violência no campo siga seu percurso contumaz. Esse impedimento é tão necessário quanto aquele que pode livrar o país da gestão genocida Bolsonaro-Mourão!

 

Referências

 

IPEA. Relatório Institucional Atlas da violência no campo no Brasil: condicionantes socioeconômicos e territoriais, Ipea, 2020. Disponível em: ˂200717_relatorio_institucional_atlas_da_violencia.pdf>.

Mello, Janine. Estratégias de superação da pobreza no Brasil e impactos no meio rural, Rio de Janeiro: IPEA, 2018. Disponível em: ˂181220_livro_estrategias_de_superacao.pdf>.

ROSA, Ana Cristina. “Onde estão os negros?”. Folha de S. Paulo. p. A2, 21 jul. 2021.

TAVARES, S. J. V. Conflitos agrários e violência no Brasil: agentes sociais, lutas pela terra e reforma agrária. In: Seminário Internacional Pontificia Universidad Javeriana. Bogotá, Colombia, ago. 2000. Disponível em: https://bit.ly/2AeY7eZ

César Augusto Minto é professor na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP).

 

Le Monde Diplomatique Brasil.

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