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Por Ana Cristina Pinho | Fotos: Nilton Fukuda

 

Assistente social e pesquisadora de antirracismo e feminismos negros analisa como marcadores sociais produzem desigualdades no Brasil e aponta caminhos para o enfrentamento das opressões. [Entrevista publicada na Edição de Agosto, 2025 da Revista E – Sesc SP]

 

O Brasil se acostumou a narrativas que negam o racismo estrutural, justificando desigualdades como fruto do mérito individual ou de uma falha pessoal. A contundente conclusão é da assistente social e pesquisadora de antirracismo e feminismos negros, Carla Akotirene, para quem essa é uma estratégia histórica para o apagamento das contribuições africana e indígena na constituição da identidade nacional.

Doutora em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Akotirene tem se firmado como uma das vozes mais presentes nos estudos sobre as violências institucionais que incidem sobre as mulheres negras. A partir de pesquisas sobre temas como feminismo negro, racismo estrutural, equidade de gênero e interseccionalidade, investiga como sistemas de opressão operam na política, na justiça, no sistema prisional e na própria academia.

Seu primeiro livro, O que é interseccionalidade? (Jandaíra, 2019), integra a Coleção Feminismos Plurais, organizada pela filósofa Djamila Ribeiro. A partir do conceito cunhado por Kimberlé Crenshaw, jurista afro-estadunidense, a obra permite compreender como a intersecção de diferentes marcadores sociais (gênero, classe, raça, idade etc.) resulta na sobreposição de opressões que atingem determinados grupos, como as mulheres negras, produzindo desigualdades sociais. Para Akotirene, interseccionalidade não é um modismo acadêmico, mas um instrumento de sobrevivência. “As mulheres negras não apenas enfrentam o racismo, mas a combinação de opressões que define quem pode ter direitos e quem segue marginalizado”, explica.

Em Ó pa í, prezada! – Racismo e sexismo institucionais tomando bonde nas penitenciárias femininas de Salvador (Jandaíra, 2020), ela analisa dados sobre a ausência de políticas públicas de gênero e raça para mulheres encarceradas. Sua mais recente publicação, É fragrante fojado dôtor vossa excelência (Civilização Brasileira, 2024), aborda a fabricação de flagrantes contra a população negra e o racismo presente nas audiências de custódia. O judiciário, segundo ela, não é um campo neutro: opera a serviço de um sistema que criminaliza a pobreza. “Se há presunção de inocência no Brasil, ela não é para nós”, afirma.

Nesta Entrevista, Carla Akotirene relembra sua trajetória, explica o conceito de interseccionalidade e compartilha tecnologias de enfrentamento ao racismo, refletindo sobre as violências que sustentam as desigualdades no Brasil e as estratégias para desmantelá-las.

Como sua formação familiar moldou a sua consciência política? 
Sou filha de dona Célia e do seu Carlos. Sempre tenho dificuldades de falar de minha mãe, porque o próprio racismo produziu em mim um tipo de feminilidade que pode ter atacado minha mãe diversas vezes, uma vez que ele também afeta essas relações entre mães e filhas. Eu sempre tive vergonha de minha mãe. Uma mulher negra, retinta, casada com Carlinhos Negrão, um homem preto, técnico de segurança. Família toda preta. E o que eu tinha de entendimento ali, com dona Célia, era de que ela não era digna de amor porque meu pai tinha outra companheira, perto de casa. Então, eu sempre quis ser Zezé, a mulher branca, apresentada socialmente, de cabelos lisos. A mulher bonita e que painho achava que merecia todos os cuidados.

Havia outros fatores que afastaram sua mãe da possibilidade de ser uma referência para você?  
Cresci sem reconhecer a questão racial como algo central. Eu queria muito “dar certo”, mas não queria estar ancorada na história dos meus pais. Eu questionava minha mãe e dizia: “olha pra isso aqui, não tem nem televisão”. Eu tinha que assistir ao programa da Xuxa na casa da vizinha e, quando Xuxa abria o programa mostrando frutas, uma abundância que eu não via dentro da minha casa, eu cobrava tudo isso de minha mãe. Hoje, eu vejo que a culpa disso é do racismo, de não agradecer pelo alimento, pelas vezes que a camisa da escola estava atrás da geladeira para secar e ir no dia seguinte, porque só tinha uma. Só com o movimento negro fui entender a importância do que meus pais me deram.

E como foi seu encontro com o movimento negro? 
O movimento negro me convidou a amar minha mãe, acreditar que ela era uma figura de conhecimento, de intelectualidade, uma vez que ele questiona a noção de que o conhecimento só está nos espaços acadêmicos. Não. Até porque as nossas mães, com um salário-mínimo, conseguem sustentar uma família inteira, conseguem produzir resistência dentro da comunidade. A gente vem de uma matriz filosófica que ensina a colocar água no feijão para render, para servir outras pessoas. A gente vem de uma rede de afeto que, para a vizinha fazer faxina, a gente passa o olho nas crianças. O movimento negro me deu formação política, o entendimento da estrutura do racismo e a percepção de que o lugar onde minha mãe foi colocada não é o lugar de uma mulher fracassada, mas o lugar de uma mulher que está dando certo socialmente, porque ela não desistiu de mim nem de me ver vencendo na vida. Tanto que sou a primeira pessoa da minha família a ter um emprego público, a ingressar no ensino superior e a fazer mestrado e doutorado.

 

O movimento negro me convidou a amar minha mãe, acreditar que ela era uma figura de conhecimento, de intelectualidade, uma vez que ele questiona a noção de que o conhecimento está só nos espaços acadêmicos 

Foi o seu despertar racial?  
Eu já tinha trabalhado como cordeira nos blocos de Carnaval, de segurança também. Conheci Jorge Washington, ator do Bando de Teatro Olodum, que sempre me convocava para ir ao teatro assistir à Cabaré da raçaÓ Paí ó, todos esses espetáculos antirracistas, mas eu nunca ia. Já com 23 ou 24 anos, tentando ter uma identidade racial, fui com ele para o ensaio do Ilê Aiyê, no bairro do Curuzú. E lá, junto com outras pessoas influentes da luta antirracista, uma mulher se incomodou comigo porque, para ela, era uma ofensa uma pessoa com a minha pigmentação não ter nada de relevante para falar em termos antirracistas.

Mais tarde, quais foram suas influências para esse letramento racial e enfrentamento ao racismo? 
Luiza Barros, que foi minha chefa na Secretaria de Política de Promoção da Igualdade Racial na Bahia. Ela me chamou bastante atenção porque eu vim do movimento de juventude, onde só pensava em violência policial, extermínio de jovens negros, e eu não mencionava nada em relação às mulheres encarceradas ou vítimas de estupro. Ou sobre a legalização do aborto, sobre a forma como a gente apoia as pautas que atingem majoritariamente homens negros, mas também precisamos constrangê-los a apoiar as pautas que são nossas. Luiza Barros propôs esse desafio de entender que as estruturas estão articuladas. Então, não adiantaria só falar de racismo sem entender o etarismo, o adultocentrismo, a luta contra a opressão. Luiza Barros fez com que eu percebesse que o feminismo negro é um projeto intelectual que não quer eliminar apenas uma opressão, mas entender que essas opressões são conjuntas e se estendem a outros grupos que vivem a identidade de maneira diversa. Então, ela teve uma importância muito grande para mim, além de minha mãe, de Vilma Reis, Lélia Gonzalez (1935-1994), Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento (1942-1995), Neusa Santos Souza (1948-2008) e tantas outras.

Como o racismo e o sexismo se articulam na experiência das mulheres negras no Brasil?  
Lélia Gonzalez já trouxe essa revelação para nós: a gente entende que o Brasil é fruto de um estupro colonial, estupro de indígenas e de africanas. Então, é o racismo e o sexismo ali, se intercambiando, mostrando que a sociedade pariu uma identidade na qual a pele é negra, mas ao mesmo tempo é bronzeada, o cabelo é cacheado, mas ao mesmo tempo tem a silhueta indígena. O sexismo aparece até de maneira idílica. A dimensão de gênero em relação ao que foi submetido às mulheres negras dentro do processo da colonialidade permanece até hoje no trabalho doméstico, no qual sofremos abuso sexual, porque a mão de obra negra está nesse lugar. Mas, além de mão de obra, ela está suscetível a sofrer abuso sexual, assédio, violação de seus próprios direitos. Isso é sexismo, porque somos nós dentro dessa experiência de fundação da colonialidade, na qual foram as mulheres negras que tiveram seus filhos vendidos. A gente até reivindica que quer ter filhos vivos, não quer filhos desaparecidos, nem quer que a experiência do cuidado com a criança seja tirada porque a gente está fazendo faxina na casa de alguém, ou porque quando a gente chega em casa, a criança já está dormindo. Isso é experiência de raça e gênero encontradas ali, por conta da condição, também, de classe em que fomos colocadas. Uma condição de trabalho permanente feito para mulheres negras. Então, na cultura brasileira, o racismo e o sexismo andam juntos porque você vive a sua condição de raça através do seu corpo sexuado, e você vive a sua condição de gênero a partir da raça, nesse lugar da mulata, como a Lélia Gonzalez trouxe para nós e que a Patrícia Hill Collins chamou de “imagem de controle”, o lugar da nanny, da mãe preta, da mulata, da atleta sexual. Tudo isso é racismo sexista, patriarcal e indissociado um do outro.

Você olha para raça, gênero, classe, território, religiosidade e faz uma análise interseccional. O que é interseccionalidade e como foi o seu processo de construção desse olhar crítico? 
É uma encruzilhada discursiva. Uma avenida com várias outras se cruzando. Esse cruzamento de avenidas que não se separam é a interseccionalidade. Eu, Carla, sou uma encruzilhada, pois não consigo separar dessa avenida o fato de ser mulher, negra, nordestina, de religião de matriz africana e em termos metafóricos, há uma tendência a hierarquizar quem vem primeiro. Então, a interseccionalidade é uma sensibilidade analítica exatamente para não criar hierarquias em relação às identidades, uma vez que uma fortalece a outra. Se dou as costas para uma avenida, se impeço o trânsito ou essa articulação, eu deixo de olhar com atenção para a outra. Quem propôs a interseccionalidade foi uma jurista estadunidense chamada Kimberlé Crenshaw, em 1989. Ela sistematizou a experiência das mulheres negras em denunciar que existe racismo, mas também capitalismo, patriarcado, capacitismo e, nesse sentido, a construção de uma sociedade onde os direitos humanos sejam valorizados olha com atenção para todas as avenidas, todas as encruzilhadas.

E sobre a discussão sobre o termo e conceito “parditude”? Como você vê o lugar das mulheres pardas no movimento negro? 
Eu não gosto do termo. Para mim, é uma experiência recente, geracional, de rede social, no intuito de criar visibilidade para as pessoas que estão fazendo isso, desconsiderando o esforço do movimento negro ao mostrar que nem todo negro tem a cor. O próprio Steve Biko ao dizer que ser negro não é questão de pigmentação, o próprio Ilê Aiyê cantando que ser negro não é questão de pigmentação, já demonstraram suficientemente que fomos vítimas de um processo de embranquecimento da população, mas que as raízes afrocêntricas e indígenas permanecem aqui. Então, eu vejo que pessoas negras de pele clara são lidas como pardas e que, dentro das políticas públicas, pretos e pardos, formam a população negra, ainda que em alguns territórios, como o Norte, a gente saiba da identidade indígena, que também foi vítima de apagamento. Mas sendo uma militante do movimento negro, trabalho dentro das construções de políticas de promoção da igualdade racial, criadas pelo movimento negro. Pretos e pardos formam a população negra e foi graças a essa junção que a gente conseguiu políticas de promoção da igualdade racial como cotas para ingresso na universidade e políticas de saúde, por exemplo. Se eu retirar o pardo da identidade negra, a gente só fica com 10,2% da população [segundo dados do último Censo do IBGE], que é da minha cor de pele. Quando o racismo vem, ele vem para os negros indistintamente da cor da pele, mas quando o colorismo vem, ele vem inclusive acionado no sentido de promover maior distanciamento para as pessoas retintas. Então, dizer que a cor da pele não é um marcador é de uma irresponsabilidade terrível, é tirar a experiência parda do lugar que o movimento negro criou exatamente para trabalhar no âmbito das políticas públicas.

Quais são as tecnologias que a gente pode acessar para enfrentar o racismo e se fortalecer na prática? 
Existem várias, mas é preciso entender que há níveis diferentes para lidar com o racismo. Muitas de nós nem percebem que a situação é racista. Eu, por exemplo, já devo ter vivido muitas situações, no entanto, quando outras mulheres, inclusive brancas, me sinalizaram que foi racismo, eu não quis aceitar. Porque quem estava discriminando a minha entrada era um homem negro – é porteiro, é segurança. Então, com medo daquele homem negro ser demitido, preferi deixar tudo na condição de gênero e esquecer que eu estava sendo discriminada por raça, já que aquele trabalhador não estava representando a si mesmo, mas sim, a instituição que o preparou. Quando recebo uma demanda de racismo, antes de promover uma discussão nesse sentido, reparo na instituição que deveria ter preparado o porteiro para entender que ele não pode ser preconceituoso. A responsabilidade é institucional também, e não só daquele trabalhador que foi construído do ponto de vista histórico. A gente tem que denunciar, combater e se organizar em termos de saúde. Ana Elisabete Aparecida Pinto diz que racismo implica humilhação, às vezes você não consegue nem responder à situação racista, porque se sente humilhado, adoecido e sem conseguir colocar para fora as sensações de adestramento promovidas no seu corpo. Há também a dimensão, a partir do ponto de vista do pensamento negro, do empoderamento coletivo, no sentido de não apenas se organizar enquanto identidade política, mas numa política de identidade que olha para todos e todas. A rede da minha família não olha somente para mim, eu preciso olhar para o meu irmão e estimular que ele volte a estudar, por exemplo.

“Há também a dimensão, a partir do ponto de vista do pensamento negro, do empoderamento coletivo, no sentido de não apenas se organizar enquanto identidade política, mas numa política de identidade que olha para todos e todas.”

Carla Akotirene

O que representa a popularização e o alcance do legado de mulheres negras precursoras em diferentes campos do saber, no Brasil, como Dandara dos Palmares e Carolina Maria de Jesus? 
Essas mulheres e muitas outras são fundamentais para a construção de um ponto de vista antiepistemicida. Epistemicídio, conceito também trabalhado por Sueli Carneiro, que tem relação com o apagamento das nossas narrativas. Quando a gente fala de Dandara (1654-1694), a gente está abrindo mão de falar apenas de uma dimensão masculina, de falar de Zumbi dos Palmares (1655-1695), como se ele tivesse feito tudo sozinho, como se não houvesse Dandara e Acotirene, uma sacerdotisa do Quilombo de Palmares. As ações quilombolas eram guiadas por uma mulher mais velha e isso é apagado da história oficial, que é racista e machista. A libertação dos escravizados protagonizada por escravizados é marcada pela ação de uma mulher branca, a princesa Isabel (1846-1921), sempre nessa tentativa de criar heróis, heroínas individuais e não como fruto de um esforço coletivo. Carolina Maria de Jesus (1914-1977) é importante até na denúncia em relação ao capitalismo, estrutura que coloca a gente na condição de fome, de apagamento de nossas autorias, uma vez que a sua forma de escrever foi desautorizada, pois ela não escrevia na língua do colonizador. Lélia Gonzalez chamou nossa atenção para isso, na dimensão do pretuguês. Temos uma herança bantu, africana, uma forma de falar que nem sempre vai colocar as palavras no plural, que vai trocar o “l” pelo “r”, uma vez que esse “l” não faz parte da comunicação bantu. Como a história não conta isso para a gente, a nossa tendência é achar nossa mãe ignorante, e que a nossa avó não fala direito.

Como, então, resgatar o poder da palavra? 
Entendendo que alguns silêncios estão comunicando que houve o apagamento da nossa história, do nosso ponto de vista. A gente não precisa falar o tempo inteiro, mas a gente não pode ser silenciada. A gente recupera a nossa comunicação dando comida ao dono da nossa encruzilhada. Alimentar a nossa encruzilhada é alimentar o que precisa de acolhimento teórico, epistemológico e filosófico. Voltando às avenidas da interseccionalidade, alimentar somente a avenida da raça nos impede, por exemplo, de olhar para o gênero e perceber que o Brasil é o quinto país no mundo que mais mata mulheres.

 

Fonte: Revista E – Sesc SP, Edição de Agosto, 2025.

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