Por Jessica Penha

A mulher negra é tão “objeto que pertence à tal lugar ou indivíduo” que não pode ser vista como alguém capaz de sentir, que arde, chora e sonha tanto quanto os outros.

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU) estamos na década internacional de afrodescendentes (entre 2015 e 2024). Ao longo desse período e, principalmente no ano de 2020, observamos uma série de levantes sociais pelo mundo, as e os negros, a comunidade LGBTQIA+ e as mulheres gritam e lutam por seus direitos, mas algo deve ser lembrado, em todos os debates de minorias sociais há algo em comum: pessoas negras.

Enquanto esses grupos se levantam, o discurso conservador e antidemocrático aumenta a cada dia, sendo favorecido pela lógica do liberalismo econômico. E, como vítima das diferenças estruturais que nos trouxeram aqui, está a mulher negra, proclamando pelo que é seu em meio ao caos do mundo, buscando seu lugar em momentos de crise sanitária, política e econômica.

É irônico pensar no estigma da mulher frágil e delicada quando se é uma mulher negra. Principalmente para aquelas que, em todos os seus anos de vida, nunca foram vistas e tratadas dessa forma, nem uma única vez e, inclusive, são colocadas como fortes, mesmo que ela esteja nitidamente despedaçada.

Achille Mbembe cita uma experiência da psicanálise em seu aclamado “Crítica da Razão Negra” para explicar a fenomenologia da colonização na mente dos indivíduos colonizados e a introdução do ideal narcisista europeu como algo que deveria ser alcançado. Segundo a “experiência do espelho”, o sujeito negro é colocado dentro de uma sala com um espelho, ao se observar ele vê um reflexo duplicado, primeiro o “eu Negro”, bruto, bárbaro e primitivo, algo que beira o excêntrico e o animalesco, algo que ele não quer ser. Mas, para além desse primeiro reflexo indesejado, o sujeito negro observa algo novo, ele se vê branco, dono de terras e dinheiro, nesse reflexo duplicado ele observa o que representa poder para ele e, mais que isso, enxerga a possibilidade de vir a se tornar algo. Essa experiência representa o roubo do “eu” e sua substituição por algo incapaz de autenticidade.

Solidão da mulher negra

A mulher negra trabalha desde o início da escravidão de seu povo, sempre em papel de subserviência com seu senhor, sua sinhá e seu marido. Ela é ensinada a servir e, desde pequena, tem sua inocência roubada para aprender a ser forte e aguentar a série de abusos que vai sofrer ao longo da vida por ter nascido com mais melanina do que o socialmente aceito. Atualmente não é muito diferente.

Nem todas as meninas crescem lendo Carolina Maria de Jesus, poucas são ensinadas a transgredir por bell hooks e menos ainda são as que escutam discursos de Lélia Gonzalez, Angela Davis ou Conceição Evaristo sobre feminismo e, mais ainda, sobre os feminismos negro.

A mulher negra contemporânea via filmes em que pessoas como ela são as que servem, lavam e passam e, quando são mulheres fortes, são tiranas, sem sentimentos e soberbas. Nas periferias, desde pequena ela é ensinada que, se quer chegar em algum lugar, deve ser como essa mulher forte dos filmes e renegar sentimentos, seu foco são os estudos e o trabalho, jamais havendo espaço para fragilidades e amores.

Ela cria então uma capa protetora, quase uma casca, onde ninguém pode atingi-la e é nesse reino protegido que se encontra a solidão da mulher negra, rejeitada pelos homens quando de pele retinta e vista como objeto sexual quando de pele mais clara. Na experiência do espelho, podemos dizer que a mulher negra olha para si como um ser frágil sentado no chão, talvez aos prantos, talvez solitária, enquanto seu reflexo duplicado – que é sua realização pessoal – só pode ser uma mulher forte, bruta e tirana.

Mas, por que não frágeis? A única opção de reflexo para a mulher negra é ser forte. O mundo não permite que seja diferente disso. Seja no externo a ela, com os desconhecidos e sujeitos ávidos por seu fracasso, seja no interno, onde nem seus amigos mais íntimos conseguem enxergar sua latente fragilidade. Uma mulher negra que fala alto, sabe seu lugar e luta pelo que é seu sempre tende a ser colocada em ambientes dicotômicos onde deve escolher entre a subserviência e a tirania.

Em última análise, é uma questão de objetificação, a mulher negra é tão “objeto que pertence à tal lugar ou indivíduo” que não pode ser vista como alguém capaz de sentir, que arde, chora e sonha tanto quanto os outros. Obrigada a se trancar sozinha na torre que a faz forte, a mulher negra é entendida como um mero algo que está ali, incapaz de ter e produzir conhecimento e, pior, incapaz de sentimento.

Ela é inserida, pouco a pouco, na torre da solidão que a faz crescer e ir além do imaginado para sua cor, mas, na medida que essa escalada para o sucesso acontece, essa mulher é colocada cada vez mais longe do “sujeito capaz de sentir” e que merece ser amado e respeitado. Como se, para escalar a montanha do sucesso, precisasse jogar fora seus sentimentos pouco a pouco. Quanto mais forte e quanto mais alto ela chega, mais se encontra sujeita a comparações onde o outro é frágil e merece cuidado enquanto ela é uma pedra bruta que se vira e não precisa de auxílio.

 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil.

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