Por Victoria Lustosa Braga

A criação do Movimento Negro Unificado em 1978, uma das mais importantes organizações do ativismo negro no Brasil, está diretamente relacionada ao enfrentamento da violência contra pessoas negras. Conheça este e outros marcos dessa história.

 

O recente lançamento do Plano Juventude Negra Viva (2024), uma iniciativa intersetorial do governo federal que objetiva reduzir a violência letal e as vulnerabilidades que afetam jovens negros, representa um avanço importante no enfrentamento a um problema social frequentemente invisibilizado: a violência contra jovens negros e negras. O Juventude Negra Viva foi baseado no Plano Juventude Viva (2012), que também tinha como foco a redução de vulnerabilidades. Segundo o último Atlas da Violência, a violência é a principal causa de morte entre jovens no Brasil. É especialmente entre jovens negros, do sexo masculino e com idade entre 15 e 29 anos, que recai a maior parte dos homicídios. Os jovens desse grupo também constituem as principais vítimas da letalidade policial. Um levantamento realizado pelo Plano Juventude Negra Viva, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Banco Mundial aponta que na década entre 2012 e 2021, 298.602 jovens foram assassinados no país, sendo 76% negros.

Esses números evidenciam as desigualdades, o racismo estrutural e a violência letal que atingem a juventude negra, fenômenos amplamente debatidos por atores da sociedade civil há pelo menos cinco décadas. A criação do Movimento Negro Unificado em 1978, uma das mais importantes organizações do ativismo negro no Brasil, está diretamente relacionada ao enfrentamento da violência contra pessoas negras e remete a dois casos de violência contra jovens negros: a tortura e assassinato de Robson Silveira da Luz, morto por policiais, e a discriminação contra quatro jovens negros que foram impedidos de participar de um time de voleibol. Para além do movimento negro, o movimento de juventude negra protagonizou a articulação social em torno da agenda de enfrentamento à violência contra esse grupo, com mobilizações direcionadas à sociedade civil e ao Estado. O Plano Juventude Viva e o Plano Juventude Negra Viva resultam da institucionalização dessas demandas movimentalistas, um processo que foi marcado por conflitos entre atores estatais e societais. A linha do tempo a seguir destaca marcos importantes dessa trajetória de articulação social e institucional.

2007
1º Encontro Nacional da Juventude Negra

Foi realizado o 1º ENJUNE (Encontro Nacional da Juventude Negra), com o fim de construir uma articulação de jovens negros e negras de todo o país. Mais de 700 pessoas participaram do ENJUNE, que gerou aproximadamente 700 propostas divididas em 14 eixos temáticos e direcionadas a duas instâncias: 1. ao poder público e 2. à sociedade civil organizada, organizações do movimento negro e à juventude negra. A pauta do combate à mortalidade da juventude negra foi escolhida como prioridade de ação e passou a ser vocalizada principalmente através da campanha “Contra o Genocídio da Juventude Negra”.

2008
1ª Conferência Nacional de Juventude

A 1ª Conferência Nacional de Juventude marca o início da trajetória institucional dessa pauta. Como resultado da articulação do movimento de juventude negra, a resolução mais votada da Conferência tratava da implementação das resoluções do ENJUNE. A partir dessa proposta, a mortalidade da juventude negra foi designada como agenda prioritária da Secretaria Nacional de Juventude. No mesmo ano foi criado o Grupo de Trabalho Juventude Negra e Políticas Públicas no Conselho Nacional de Juventude, que buscou articular uma resposta intersetorial para esse problema. Alguns atores do movimento também passaram a ocupar espaços importantes na gestão.

2009
Projeto Farol

A SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) lançou o Projeto Farol em parceria com o Ministério da Justiça. O Projeto tinha como objetivo promover e apoiar iniciativas de prevenção da violência contra a juventude negra e de redução de vulnerabilidades, com foco em jovens em situação de conflito com a lei ou de exposição à violência. A iniciativa foi implementada em 13 cidades entre 2009 e 2010, mas não foi reeditada nos anos posteriores.

2010
Oficina de Combate à Mortalidade da Juventude Negra

A SEPPIR realizou a “Oficina de Combate à Mortalidade da Juventude Negra”, que procurou construir um plano de enfrentamento às altas taxas de mortalidade desse grupo em diálogo com gestores, especialistas e militantes. A partir dessa oficina, a agenda de combate à violência contra a juventude negra ganhou maior centralidade na Secretaria. Apesar da presença de gestores de diferentes pastas envolvidas na formulação dessa iniciativa, a ausência de representantes do Ministério da Justiça foi criticada na ocasião.

2011
2ª Conferência Nacional de Juventude

A demanda por uma iniciativa estatal de combate à violência contra jovens negros foi destaque novamente entre as propostas finais aprovadas na 2ª Conferência Nacional de Juventude. Uma das propostas tratava justamente de implementar e fiscalizar, à luz das resoluções do ENJUNE, um “Plano Nacional de Enfrentamento à Mortalidade da Juventude Negra”, o que ilumina a centralidade dessa agenda no setor de juventude e a articulação do movimento de juventude negra em espaços participativos.

 

Mapa da Violência e Fórum Direitos e Cidadania

A edição de 2011 do Mapa da Violência destacou os altos índices de mortalidade de jovens no Brasil, especialmente negros. Nesse período, o debate se intensificou em diversos espaços institucionais. O Conselho Nacional de Segurança Pública aprovou uma resolução recomendando a formulação de políticas relacionadas ao assunto. O tema também passou a compor as discussões do Fórum Interconselhos e do FDC (Fórum Direitos e Cidadania), ambos criados pela Presidência da República. No segundo, foi instituída uma Sala de Situação da Juventude Negra para a construção de uma ação estatal que buscasse solucionar o problema da violência contra esse grupo. A pauta foi estabelecida como prioritária e os membros do FDC trabalharam na construção de uma proposta entre 2011 e 2012.

2012
Projeto de Lei 4471/2012

O Projeto de Lei 4471/2012, elaborado em conjunto com o Ministério da Justiça, foi apresentado ao Congresso e discutido com gestores e atores sociais envolvidos no Juventude Viva. O PL propunha principalmente a investigação obrigatória de homicídios cometidos por agentes do Estado e justificados como resultantes de autos de resistência. Ainda que a falta de comprometimento do Ministério da Justiça seja uma das principais críticas dos movimentos ao encaminhamento dessa agenda, alguns gestores da pasta foram centrais na elaboração do PL, o qual está diretamente relacionado ao tema da violência contra a juventude negra.

 

Lançamento do Plano Juventude Viva

O Plano de Prevenção à Violência contra a Juventude Negra — Plano Juventude Viva foi lançado sob a coordenação da Secretaria Nacional de Juventude, através da Secretaria-Geral da Presidência da República e da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. O Juventude Viva teve um desenho multisetorial e transversal e envolveu ações de 11 ministérios e secretarias, estruturadas em quatro eixos: “Desconstrução da Cultura de Violência”, “Transformação de Territórios”, “Inclusão, Emancipação e Garantia de Direitos” e “Aperfeiçoamento Institucional”. O plano foi inicialmente voltado aos 132 municípios que concentravam 70% dos homicídios de jovens negros. Posteriormente foram adicionados outros 10 municípios, somando 142.

2013
A participação social na implementação do Juventude Viva

Foi instituído o Comitê Gestor Federal Juventude Viva, responsável por acompanhar a implementação do programa, e o Fórum de Monitoramento Participativo Interconselhos Juventude Viva, uma instância de participação e controle social. Também estavam previstos Comitês Gestores estaduais e municipais. No nível local, existiam os Núcleos de Articulação Territorial, que deveriam contar com a participação de gestores, organizações da sociedade civil e articuladores regionais. Os atores estatais responsáveis pelo plano, em conjunto com os atores da sociedade civil que o acompanhavam, formaram a Rede Juventude Viva.

2015
Reformulação do Plano Juventude Viva

Iniciaram-se discussões visando o aprimoramento do plano com o objetivo de incidir diretamente sobre a redução da violência, para além das ações de prevenção que foram o foco dos primeiros anos de implementação. Nessa nova fase houve uma tentativa de reestruturação centralizada no engajamento de atores do setor de segurança pública e na construção de um Plano Nacional de Redução dos Homicídios. Os dois principais eixos do Juventude Viva nesse segundo momento foram: “Direitos” e “Justiça e Segurança Cidadã”.

 

CPIs (Comissões Parlamentares de Inquérito) sobre o tema

Foram instaladas duas comissões relacionadas ao tema no Legislativo: a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre os Homicídios de Jovens Negros, da Câmara dos Deputados, e a Comissão Parlamentar de Inquérito do Assassinato de Jovens, do Senado, que no decorrer dos trabalhos optou por focar nos assassinatos de jovens negros. Entre os elementos principais dos diagnósticos das Comissões, estava a constatação da existência de um racismo institucional que influenciava diretamente nos homicídios e a necessidade de uma reforma na segurança pública do país. O termo “genocídio” foi empregado para descrever o fenômeno nos relatórios das duas CPIs.

2016
Requisição e retirada da urgência constitucional do Projeto de Lei 4471/2012

Em abril, a presidenta Dilma Rousseff requisitou a tramitação com urgência constitucional de uma nova versão do Projeto de Lei 4471/2012. Essa versão continha modificações suscitadas em acordos que ocorreram durante a tramitação. Em junho, após o impeachment, a urgência constitucional foi retirada a pedido do então presidente Michel Temer. A retirada do caráter de urgência já sinalizava a marginalização dessa agenda entre as prioridades do governo federal nos anos subsequentes.

2017
Lançamento do Novo Plano Juventude Viva

Foi anunciado o Novo Plano Juventude Viva, uma parceria entre a Secretaria Nacional de Juventude e a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). O Comitê Gestor Federal do Plano Juventude Viva também foi reativado. O Novo Plano Juventude Viva contava com três eixos de atuação: “Gestão do Novo Plano Juventude Viva”, “Direitos e Proteção nos Territórios”, e “Justiça e Segurança Cidadã para Jovens Negros”. Também havia uma nova meta: a redução de 15% no número de homicídios da juventude negra durante os próximos quatro anos.

2019
Descontinuidades na implementação do Plano Juventude Viva

Um relatório da Consultoria Legislativa e da Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados apontou que o Plano Juventude Viva foi descontinuado na gestão do presidente Jair Bolsonaro. A pasta responsável, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, respondeu que a iniciativa estava em fase de reformulação. Essa reformulação nunca foi publicizada.

2023
Elaboração do Plano Juventude Negra Viva

Foi anunciado via Decreto nº 11.444/2023 o GTI (Grupo de Trabalho Interministerial) responsável pela elaboração do Plano Juventude Negra Viva, liderado pelo Ministério da Igualdade Racial e pela Secretaria-Geral da Presidência da República. O GTI se reuniu regularmente para construir um novo diagnóstico e desenho do plano. No mesmo ano, foram realizadas caravanas do Plano Juventude Negra Viva nos 26 estados e no Distrito Federal, com a participação de aproximadamente 6 mil jovens.

2024
Lançamento do Plano Juventude Negra Viva

No dia 21 de março foi instituído via Decreto nº 11.956/2024 o Plano Juventude Negra Viva, que atuará de forma transversal e intersetorial para reduzir a violência letal e as vulnerabilidades que recaem sobre a juventude negra, além de enfrentar o racismo estrutural. São 18 ministérios envolvidos em mais de 200 ações pactuadas, 43 metas e 11 eixos: “Acesso à justiça e segurança pública”, “Promoção da saúde”, “Geração de trabalho, emprego e renda”, “Educação”, “Cultura”, “Ciência e tecnologia”, “Esporte”, “Meio ambiente, garantia do direito à cidade e valorização dos territórios”, “Assistência social”, “Segurança alimentar e nutricional” e “Fortalecimento da democracia”.

 

BIBLIOGRAFIA
Braga, Victoria. Os limites da institucionalização: o status quo hermético em ação no Plano Juventude Viva e no Programa Cultura Viva. Dissertação (Mestrado em Ciência Política). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2024.

Brasil. Plano Juventude Negra Viva. Ministério da Igualdade Racial, Secretaria Geral da Presidência da República. Brasília, 2024…

Victoria Lustosa Braga

Doutoranda e mestre em ciência política pela USP (Universidade de São Paulo), além de bacharel em gestão de políticas públicas pela mesma universidade. Integra o CEM (Centro de Estudos da Metrópole) e o NDAC/CEBRAP (Núcleo Democracia e Ação Coletiva do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). É também consultora e pesquisadora do Projeto Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo.

 

Fonte: Centro de Estudos da Metrópole (CEM).

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